quinta-feira, agosto 11, 2011

A Líbia é o nosso futuro

por Luís Britto Garcia [*]
Cartoon de Victor Nieto. 1
Nenhum homem é uma ilha; a morte de qualquer pessoa afecta-me, pregava John Donne. Nenhum país está fora do planeta: o genocídio cometido contra um povo assassina-me. Tudo o que acontece na Líbia fere-me, prejudica-te, afecta-nos.

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Falemos como homens e não como chacais ou monopólios mediáticos. A Líbia não é bombardeada para proteger a sua população civil. Nenhum povo é protegido lançando-lhe explosivos nem despedaçando-o com 4.300 ataques "humanitários" durante mais de cem dias. A líbia é incinerada para lhe roubarem seu petróleo, suas reservas internacionais, suas águas subterrâneas. Se o latrocínio triunfa, todo país com seus recursos será saqueado. Não perguntes sobre quem caem as bombas: cairão sobre ti.

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Encarceraram os comunistas; nada poderia importar-me menos porque não sou comunista, ironizava Bertold Brecht. O Conselho de Segurança da ONU aprova uma zona de "exclusão aérea" a favor dos secessionistas líbios, mas permite um bombardeio infernal; a China e a Rússia abstêm-se de vetar a medida porque como não são líbios nada poderia importar-lhes menos. De imediato os Estados Unidos ameaçam a China com a declaração de uma "moratória técnica" da sua impagável dívida externa e agridem o Paquistão. A China replica que "toda nova ingerência dos Estados Unidos no Paquistão será interpretada como acto não amistoso" e arma o país islâmico com cinquenta caças JF-17. Nenhum povo está fora da humanidade: se não vetas a agressão contra outro, a desencadeias contra ti.

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Conta Tólstoi que um urso ataca dois camponeses: um sobre a uma árvore, cedendo ao outro o privilégio de defender-se só. Este vence e conta que as últimas palavras da fera foram: "Quem te abandona não é teu amigo". A Liga Árabe, a União Africana, a OPEP trepam a árvore da indecisão esperando a vez de serem esquartejadas. Ao abandonar as vítimas te abandonas.

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Como nos tempos em que o fascismo assaltava a África, hoje a Itália, Alemanha, Inglaterra, França e outros pistoleiros da NATO sacrificam armamentos e efectivos numa guerra que só favorecerá os Estados Unidos. Impedido pelo seu Congresso de investir abertamente fundos no conflito, Obama queixa-se dos seus cúmplices da NATO porque sacrificam à despesa militar menos de 2% dos seus PIB e ordena-lhes que imolem pelo menos 5% ("El futuro de la Otan", Editorial El País, 15/06/2011). São instruções inaplicáveis quando o protesto social, a crise financeira, a dívida pública impagável e o próprio gasto armamentista minam os governos do G-7. Perante tais exigências, a Itália opta por não participar mais na associação criminosa (agavillamiento). A Agência Internacional autoriza a gastar das reservas que não tem 60 milhões de barris de petróleo em dois meses. Os Estados Unidos desbaratam em 2010 uma despesa militar de 698 mil milhões de dólares, 43% do total mundial de 1.600 mil milhões de dólares (Confirmado.net 17/06/2011). Assim se dilapidam em forma de morte os recursos que deveriam salvar a vida. Se montas guerras para devorar o outro, as guerras te devorarão a ti.

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Como na época de Ali Babá e os quarenta ladrões, os banqueiros internacionais que tão benevolamente receberam 270 mil milhões de dólares em depósitos e reservas da Líbia assaltam o botim e estudam trespassá-lo àqueles que tentam assassinar os legítimos donos. Também criam para os monárquicos de Bengazi um banco central e uma divisa secessionista. São os mesmos financistas cujo latrocínio custa à humanidade o actual colapso económico: não indague a quem roubam os banqueiros: desfalcam a ti.

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No estilo das blitzkrieg nazis, o presidente dos Estados Unidos inicia guerra sem a autorização dos seus legisladores e prolonga-as ignorando o Congresso, onde dez deputados denunciam o presidente e o secretário da Defesa cessante Robert Gates e vetam os fundos para a agressão contra a Líbia tachando-a de ilegal e inconstitucional. Não averigúes se deves impor a tiros a democracia a outros povos: acaba antes com os vestígios dela que restavam no seu próprio país.

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Cada homem é peça do continente, parte do todo, insiste John Donne. Os inimigos do homem não cessam de fragmentá-lo para destruí-lo melhor. Os impérios, que são quebra-cabeças instáveis de peças juntadas à força, no exterior fomentam ou inventam o conflito de civilização contra civilização, o rancor do iraniano contra o curdo, do xiíta contra o sunita, do hindu contra o muçulmano, do sérvio contra o croata, do descendente contra o ascendente, do ancestral contra o menos ancestral, do líbio contra o líbio, do venezuelano contra o venezuelano. De cada variante cultural pretendem fazer um paisinho e de cada paisinho um protectorado. Quem nos separa nos faz em pedaços, quem me divide me mutila. Não indagues como despedaçam a Líbia: esquartejam a ti.

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Toda pilhagem arranca com promessa de golpe fácil e atola-se na carnificina insolúvel. As guerras do Afeganistão, Iraque, Líbia, Iémen e a agressão contra o Paquistão arrancam passeios triunfais, espatifam-se em holocaustos catastróficos e nenhuma conclui nem se decide. A resistência dos seus povos retarda a imolação da qual não te livrarão nem vetos omitidos nem organizações abstencionistas nem banqueiros carteiristas nem Congressos nulificados. Não perguntes porque são assassinados os patriotas líbios: estão a morrer por ti.

[*] Escritor venezuelano.

O original encontra-se em http://luisbrittogarcia.blogspot.com/ e a versão em francês em
http://luisbrittogarcia-fr.blogspot.com/


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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