sexta-feira, abril 20, 2018


Tambores de ódio
      

A direita faz mesmo a escolha que se pensaria impossível, aceita a liderança do chefe supremo, Trump, e vai segui-lo nas suas aventuras, onde houver golpe, onde houver estado de exceção, onde houver bomba.

Afinal, Trump é um senhor. É o nosso chefe supremo, o bombardeador-mor, o homem firme ao comando do leme. Qual instável, é uma rocha. Qual irrefletido, é um sábio. Qual desinformado, é um profeta. Tem as qualidades da decisão e da “oportunidade”, como assinala ponderadamente o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os dirigentes europeus põem-se em fila para o beija mão. A Síria está pacificada e tal era o enlevo de alguns meios de comunicação que se apressaram a noticiar as manifestações em Damasco contra o bombardeamento como se fosse a multidão a sair à rua para saudar os Tomahawks purificadores. A populaça da França e do Reino Unido, que tinha mais em que pensar, dorme tranquila. Tudo resumido, esta lição não tem novidade, não há milagre que não possa ser assegurado por uma boa carga de bombas.
A glorificação de Trump é só um episódio, talvez nem o mais importante, da cruzada de realinhamento ideológico que é sempre o prenúncio de uma estratégia de tensão e de escalada de conflitos. Sugiro ao leitor e à leitora que observe esta cruzada, a que ergue a Segunda Guerra Fria, pois ela é mais determinante do que os pretextos que a alimentam, que valem tanto como as alarmantes armas de destruição massiva que Saddam escondia no Iraque. E essa Guerra não começou no sábado, com as bombas sobre a Síria, nem vai parar por aqui.
A Segunda Guerra Fria tem um laboratório e não é no Médio Oriente, onde as leituras são sempre geoestratégicas. O seu primeiro ensaio recente foi no Brasil, onde tudo é mais terra a terra e não se pode invocar um poder oriental oculto como inimigo. Aí, a máquina de conformação montada em torno do golpe e da naturalização do regime de exceção judiciária foi de gabarito e, não por acaso, foi a primeira que chegou até nós, neste cantinho à beira-mar plantado.
Os exemplos são esclarecedores e provam o sucesso da operação, que recrutou alguns dos mais brilhantes publicistas nacionais. Um ex-diretor de jornal, João Marcelino, escreve serenamente que “tendo havido evolução a partir do que está escrito no Art.º 5 da Constituição brasileira”, esse princípio constitucional falece perante a conveniência de impedir uma candidatura presidencial e tudo se justifica. Um ex-diretor do jornal que está a ler, Henrique Monteiro, este mais empolgado, vitupera as “abencerragens”, como Catarina Martins ou Boaventura Sousa Santos, que se atreveram a condenar a prisão do ex-presidente antes de cumprida a condição do artigo 5º da Constituição brasileira, e sugere com a mesma elegância que, se as “abencerragens” fossem também para a prisão, aprenderiam com quantos paus se faz uma canoa. E um inevitável corista de ódios, Alberto Gonçalves, explica a razão definitiva para a prisão: “O sr. Lula exprime-se por grunhidos e algumas sílabas talvez retiradas da língua portuguesa”. Sucesso, os fazedores de opinião ditaram sentença e é feroz.
A Segunda Guerra Fria é, como se vê, um instrumento inteligente de polarização agressiva. Com umas atoardas, com umas historietas (algumas terminam bem e, como escrevia alguém, felizmente o espião russo e a filha que foram assassinados em Inglaterra já estão melhorzinhos), umas ameaças com cara de pau, umas declarações solenes ao país (imagine o enlevo com que Trump ou Macron começam o discurso: “acabei de ordenar às nossas forças que destruam alvos militares na Síria...”), esta Guerra é um discurso de ódios. Cria fronteiras novas, define inimigos necessários, determina afrontamentos que alinham aliados.
E treina a disciplina dos recrutas. Sem disciplina não se faz nada, os aliados dispersam-se, distraem-se, claudicam. A formatura é a regra do bom militar, como todos sabemos. Foi aliás o que nos veio lembrar a entrevista recente de Sérgio Sousa Pinto que, aqui no Expresso, puxou as orelhas aos deputados que não procuram o seu conselho e pelo menos o das boas embaixadas, antes de se pronunciarem sobre assuntos sobre os quais são manifestamente ignorantes, se não tontos. Os deputados que não seguem o protocolo tiram-no do sério, como se sabe, e esse foi o caso de um projeto de resolução apresentado por um partido relapso e que, conclui Sousa Pinto, “segundo o embaixador da Turquia, reproduz ipsis verbis um documento do PKK” (o jornal sugere concordantemente que se trata de um partido “qualificado [por quem?] como organização terrorista”, mesmo que se dê o desagradável facto de ser aliado das forças norte-americanas no norte do Iraque). Sousa Pinto esquece-se de referir se confirmou a alegação do embaixador de Erdogan, um outro senhor, mas como poderia ele duvidar de Sua Excelência? Um Embaixador, aliado, acreditado, logo pessoa de bem. “O Parlamento não deve ser tão facilmente instrumentalizável”, conclui Sousa Pinto, porque verificar se um embaixador faz propaganda seria inadmissível, crime de lesa-majestade, ou mesmo um “realejo de disparates”, o Parlamento não é instrumentalizável e o presidente da comissão muito menos. Fica dito, em tempo de guerra fria não se limpam as armas, Erdogan sempre é melhor do que muitos outros quando estamos no tempo da coleção Trump.
Esta Segunda Guerra Fria vai ser assim mesmo, feia, cheia de ameaças, de terrenos escorregadios, de protagonismos políticos de juízes temerários, de substituição da decisão democrática pela exibição de poderes fácticos, de aliados mal-encarados, de amigos sinistros. A direita, então, faz mesmo a escolha que se pensaria impossível, aceita a liderança do chefe supremo, Trump, e vai segui-lo nas suas aventuras, onde houver golpe, onde houver estado de exceção, onde houver bomba. É nessa difícil transição que estamos a assistir ainda não a uma guerra quente, mas a ouvir os tambores que dirigem a guerra fria.
Artigo publicado em expresso.pt (link is external) a 17 de abril de 2018

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