Há verdades e mentiras nos meios de comunicação,
na blogosfera e na mente das pessoas quando se trata do que realmente
aconteceu na Islândia. Neste artigo, Olafur Margeirsson, economista
islandês a fazer doutoramento no Reino Unido, revela o coelho que se
esconde nesta toca tão funda.
Manifestação em Rejkiavik. Foto de Kristine Lowe
Há verdades e mentiras nos meios de comunicação, na blogosfera e na
mente das pessoas quando se trata do que realmente aconteceu na Islândia
e da sua apregoada recuperação económica. De certo modo a Islândia
conseguiu reconhecimento como “menino prodígio” – “Wunderkind” – por
conseguir entrar em recuperação económica contra todas as
probabilidades, convertendo-se em emblema de como responder às grandes
crises económicas. No entanto, isto não é assim tão simples: nem tudo é
tão cor de rosa como se pinta. Vamos começar por algumas das afirmações
que encontrámos depois de uma pequena pesquisa de cinco minutos na
Internet, sobre a Islândia:
-Tramaram os credores dos bancos e deixaram-nos falir, para os nacionalizar logo a seguir.
- Prenderam os banqueiros dos bancos falidos.
- Expulsaram os apoiantes da austeridade - a troika e o FMI, em particular.
- Concederam enormes perdões de dívida aos cidadãos.
- Estabeleceram controles de capital a serem abolidos muito em breve, no máximo este ano.
- Em consequência disto, a Islândia está agora a crescer e, sobretudo
comparando com a endividada Europa, de uma forma absolutamente
fantástica!
- Além disso, não só está a crescer agora como as perspetivas de futuras são maravilhosas.
Assim a lição, seguindo o
exemplo da Islândia, seria deixar que
os bancos vão à falência, nacionalizá-los, aumentar os gastos públicos,
encerrar o capital dentro da economia e perdoar a dívida aos cidadãos e
às companhias em vez de perdoar aos credores dos bancos.
É uma pena, mas isto não se adequa à realidade. Continue a ler e mostrar-lhe-ei o coelho que se esconde nesta toca tão funda.
Quanto mais subir, maior é o tombo
Não é preciso ser um espírito todo-poderoso para descrever como esta minúscula mas orgulhosa nação conseguiu converter
-se num hedge fund [Fundo de cobertura,
ver Wikipedia].
Em resumo, a maioria autojustificava-se com o argumento complexo de que
“desta vez é diferente”. Especialmente os banqueiros eram considerados
uns génios financeiros, não só pela sua linhagem viking mas também pela
capacidade de pedir emprestado e de comprar “coisas” sem limite.
Incluía-se em “coisas” bens de consumo geral e carros topo de gama mas
também casas e ações. As notícias sobre estes luxos eram vulgares e a
população começou a interessar-se tanto pelos mercados que no fim toda
gente investia na bolsa e sabia o que as suas ações tinham dado no dia
anterior.
A bolsa da Islândia aumentou seis vezes o seu valor em quatro anos: em média mais de 50% ao ano!
Mas segundo reza a sabedoria popular “quando o teu vizinho compra
ações, chegou o momento de as venderes”. Que pena que ninguém, à exceção
de um punhado de pessoas sóbrias, tivesse seguido este ditado.
Os bancos e o governo
O colapso económico da Islândia em outubro de 2008 foi inevitável.
Nenhum
país conseguiu construir um setor bancário que tivesse 10 vezes o valor
do seu produto interno bruto e ficar vivo para contar a história.
Quando o Kaupthing, o maior banco islandês, chegou à bancarrota foi a
quarta maior falência empresarial na história do mundo! A bancarrota do
Glitnir era a 6º da lista e superou assim o escândalo da Enron que
ocupou o 9º lugar. O fracasso do Landsbanki ficou logo abaixo dos 10
Mais, pois terminou no nº 11.
Num pequeno lapso de tempo, menos de uma semana, mais de 90% dos ativos do sistema bancário da Islândia foram pelo cano abaixo.
O resto do sistema bancário durante os meses seguintes ia pelo mesmo caminho mas, finalmente e ao invés do saber popular fora da Islândia,
foi resgatado pelo Governo.
A SpKef e a Byr, duas Caixas de Poupança, são exemplos disso. A gula
dos banqueiros não foi menor que no caso dos grandes bancos. No entanto
o governo deu-lhes algum dinheiro,
o que, se tivesse sido devidamente divulgado, ensombraria a imagem que a
Islândia tinha ganho no estrangeiro como país onde não se resgatavam
bancos. Ainda bem que ninguém se deu conta. A SpKef foi absorvida mais
tarde pelo Novo Landsbanki (um banco de propriedade estatal) e a Byr
acabou nas mãos do Islandsbanki (Novo Glitnir).
É muito importante perceber-se uma coisa:
os governos, tanto o
“conservador” anterior, durante e após a crise de outubro, como o “de
esquerda” que assumiu o cargo após as eleições gerais de 2009,
fizeram tudo o que foi possível - absolutamente tudo - para manter a solvência dos bancos.
Inclusive os próprios bancos trataram de salvaguardar os seus valores
em Bolsa comprando as suas próprias ações (o que alguns diriam que é
abuso de mercado). As Caixas de Poupança, que caíram depois de começarem
os problemas dos três maiores bancos, eram suficientemente pequenas
para poderem ser resgatadas pelo governo, mas os bancos grandes eram, em
outubro de 2008, simplesmente grandes demais para serem realmente
resgatados. Isso não impediu que o governo tentasse tudo o que foi
possível para lhes colocar uma rede de segurança, incluindo praticamente
esvaziar as reservas de divisas do Banco Central quando se tratava de
manter o Glitnir à tona.
Como se diz que há alguns “tolos com sorte”, a
Islândia teve sorte
porque, embora tentasse, não foi capaz de salvar os bancos em outubro
de 2008. Eu nem quero pensar no custo que teria para salvar os seus
bancos hoje em dia, seria horrível!
Comparados com o custo gigantesco que os cofres públicos da Islândia teriam que sofrer se os bancos tivessem sido salvos,
os 31% do PIB do défice público da Irlanda em 2011 seriam uma piada.
As cadeias de Islândia não estão cheias de “banksters”
Assim concluímos que a primeira afirmação sobre a Islândia – que deixou
cair intencionalmente os bancos – não é de forma nenhuma real. A
realidade é que o governo tentou salvar os bancos, mas não conseguiu. E a
afirmação de que todos os banqueiros foram presos está certa mas, bem,
em rigor não totalmente certa.
Tomemos dois exemplos:
O enredo do caso “Al Thani”
O Kaupthing tornou-se famoso por conseguir que o xeique Al Thani, irmão
do emir do Qatar, comprasse ações do banco. Mais tarde, o Promotor
Especial (figura judicial especialmente criada para fazer frente a
delitos de colarinho branco) apresentou queixa, por fraude, contra o
diretor geral do Kaupthing, Hreidar Mar Sigurdsson, e o presidente do
conselho de administração da Kaupthing, Sigurdur Einarsson (claro,
Einarsson é o filho do falecido
Einar Agustsson,
ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e deputado do Partido
Progressista, o partido político que tinha o controlo da venda do
Bunadarbanki, que mais tarde se converteria em Kaupthing-Bunadarbanki e,
por fim, em Kaupthing... sirva isto apenas como exemplo de quão
estreita é a relação entre empresas e política na Islândia).
Porquê as acusações de fraude? Bom, ao que parece, o xeique não pagou
nem um cêntimo pela participação de 5% no Kaupthing Bank, simplesmente
deu o nome para o ato (fraudulento) e
conseguiu 50 milhões de dólares com isso!
O caso de Al Thani encontra-se ainda no tribunal, mas as acusações
contra Olafur Olafsson, diretor executivo/presidente do conselho de
administração do
Samskip,
terceiro maior acionista do Kaupthing e membro da equipa que comprou o
Bunadarbankinn, para começar, foram retiradas. As acusações contra
Magnus Gudmundsson, ex-diretor geral do Kaupthing Luxemburgo, também
foram retiradas. Mas as acusações contra Sigurdsson e Einarsson
continuam de pé.
O enredo do caso “Exeter Holdings”
A Exeter Holdings era uma sociedade de gestão de ativos (havia muitas!)
que conseguiu financiamento de 1100 milhões de coroas islandesas da Byr
(a Caixa de Poupança que conseguiu algum dinheiro por parte do governo
antes de ser finalmente adquirida por Islandsbanki); dinheiro que depois
foi utilizado para comprar as ações da Byr que estavam nas mãos do
banco de investimento MP Bank e dos próprios diretores da Byr. Pouco
mais tarde, a Byr declarou-se em falência e foi pedir dinheiro ao
governo, de chapéu na mão, como já se mencionou.
Assim a Byr foi utilizada, precisamente antes de se declarar em
falência, para emprestar dinheiro à Exeter Holdings, a qual resgatou o
banco de investimento MP Bank e os diretores de topo da Byr, a quem
aliviou das ações que estes tinham na própria Byr.
Dá imenso jeito
saber que, se as tuas ações estão a ponto de perder todo o valor, podes
emprestar uma ridícula quantidade de dinheiro a uma Gestora de Ativos
para ela te resgatar a ti mesmo.
Os acusados (o diretor executivo Ragnar Z. Gudjonsson, o presidente do
conselho de direção Jon Jonsson Thorsteinn e o conselheiro delegado do
MP Bank Styrmir Bragason) foram todos absolvidos. Mas aí alguém apontou o
facto de que um dos juízes que os absolveu estava ligado à Byr: era o
Chefe do Departamento Jurídico
de uma empresa cujo acionista principal era, você adivinhou, a Caixa de
Poupanças Byr. O julgamento repete-se, agora com juízes não ligados ao
caso e Gudjonsson e Jonsson acabam condenados a
quatro anos e meio
(Maddoff teve uma condenação de 150 anos e uma multa de 17 mil milhões
de dólares). Bragason continua, pelo que sei, à espera do seu destino.
O julgamento da Exeter é o caso mais bem sucedido que a Promotoria
Especial levou a cabo. Al Thani é um desses casos em que a trama é tão
complicada que um só passo em falso do Promotor pode arruinar tudo.
Outro julgamento complicado é o recente “caso Vafnings”, que foi apenas
parcialmente bem sucedido para o Promotor. Porque ainda que os acusados
fossem declarados culpados, o diretor executivo da Glitnir, Larus
Welding, e o diretor de Finanças Corporativas da Glitnir, Gudmundur
Hjaltason, o caso teve falhas de forma: os argumentos do promotor não se
ajustaram à intimação. Por isso tiveram apenas 9 meses de prisão, e por
isso unicamente 6 meses de suspensão.
O problema fundamental é que nem o sistema de justiça islandês nem
as próprias leis estão preparadas para delitos de colarinho branco da
magnitude que tiveram lugar antes, durante e depois da crise. E
certamente a Islândia não tem um exército de advogados especializados na
luta contra os delitos de colarinho branco, ao invés de muitos outros
países onde a experiência e o conhecimento sobre estes assuntos abundam.
Se combinamos tudo isto, o resultado mais provável do “caso dos
banqueiros”, infelizmente, é que ou saiam totalmente livres ou com
apenas uma palmada nas nádegas, não porque todos fossem inocentes mas
porque
o sistema de justiça não tem a preparação adequada.
Isto é para a Islândia, em certa medida, uma aprendizagem “em andamento”.
Islândia, o FMI e a austeridade
Há algumas verdades na história de que a
Islândia se opôs aos planos originais do FMI de “consolidação fiscal a médio prazo”,
tal como foram redigidos nos relatórios do FMI sobre o país. Contudo,
as objeções eram realmente pouco entusiastas, sobretudo antes de chegar
ao governo a coligação de esquerda, no princípio de 2009. Lilja
Mosesdottir, economista com doutoramento em economia pela Universidade
de Manchester (tese que se intitulou: “A economia política das relações
de género”) foi uma das parlamentares que mais alto clamou contra a
possibilidade de que o FMI pudesse aplicar em excesso a faca para fazer
cortes nas finanças públicas. Estas objeções foram talvez mais
importantes pelo facto de que Mosesdottir era então uma deputada do
Partido da Esquerda-Verde (um dos dois partidos na coligação
governante), mas teve que abandonar o partido para protestar contra o
que ela chama o servilismo do governo frente ao FMI. Portanto é verdade
que nem toda a gente na Islândia estava agradada com a presença do FMI
ainda que a “esquerda” nesse governo também não parecesse importar-se
demasiado.
O FMI estava, ao contrário, bastante contente com a forma como a
Islândia saía da crise, fosse explicitamente graças às suas políticas ou
não. Estavam, de fato, tão orgulhosos do menino prodígio – “Wunderkind”
– económico que a Islândia demonstrava ser – pelo menos segundo eles,
pois eu não estou certo de que os “Silvas” e os “Costas” da Islândia
estivessem de acordo – que
o próprio FMI organizou uma conferência para destacar os sucessos do país.
Estrelas académicas dentro do mundo da economia fizeram discursos e a
maior celebridade a falar foi provavelmente Paul Krugman.
Contrariamente ao que poderíamos pensar, a conferência não foi um
exercício confuso de auto-reforço positivo; e de facto algumas palestras
foram muito informativas (de destacar que
Simon Johnson esteve absolutamente espetacular!). E
o próprio FMI demonstrou que tinha aprendido algo! Por exemplo, de maneira muito aberta e voluntariamente, admitiu que
os controles de capital “em certas circunstâncias” são uma reação adequada a uma crise.
Isso, por si só, foi um grande passo em frente em comparação com a sua
linha de pensamento sobre a crise do sudeste asiático dos finais de 90.
Está disponível uma gravação da conferência na
web do FMI.
(continua)
Traduzido a partir de
Sintetia
Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net
A segunda parte deste artigo está aqui.
Esquerda.net