Estilhaçar a invisibilidade |
Um
dia isso iria acontecer. Mas foi preciso tanto tempo, tantas mortes,
tantos abusos, tantas cumplicidades, tantas hipocrisias, tantos e tão
pesados silêncios: do familiar mais próximo, ou do vizinho com quem nos
cruzamos todos os dias, ao juiz, ou ao chefe do Estado! Foi preciso
ser-se confrontado com um caso de uma jovem estudante de medicina de 23
anos, violada cobardemente por seis miseráveis criaturas (custa-me
chamar-lhes seres humanos) e que acabou por morrer, para que um país se
levante a clamar por justiça! Chamam-lhe «a maior democracia do mundo». Democracia? Como é possível falar-se em democracia quando metade da população, porque é mulher, está sujeita a todas as discriminações? Violações em massa, crimes de "honra", infanticídios, casamentos forçados, abortos forçados, estrangulamentos, queimaduras por ácido, crimes camuflados de acidentes ou suicídios quando o dote acaba, abusos de toda a ordem, a lista é quase sem fim e são as mulheres indianas o objecto desta "democracia"! Estilhaçar a invisibilidade! A maior parte destes crimes não são denunciados nem chegam ao tribunal ou, quando chegam ao tribunal ficam esquecidos ou arrastam-se na gaveta do irrelevante, do que não interessa porque se trata de mulheres. Estilhaçar a invisibilidade! Agora sabe-se que só em Nova Deli - a cidade onde esta rapariga foi violada durante hora e meia e depois atirada para a berma da estrada - uma mulher é violada a cada 18 horas! Estilhaçar a invisibilidade! A legislação indiana proíbe a identificação de vítimas de crimes sexuais. Esta vítima era mais uma mulher sem nome, sem identificação. Os/As milhares de manifestantes que vieram para a rua clamar por justiça na sequência deste caso, chamaram-lhe Damini, que em hindustani significa "relâmpago; raio" e que é também o nome de um filme de Bollywood de 1993 em que a principal personagem feminina luta por uma criada vítima de agressão sexual. Mas a pressão social, quer internamente quer a nível internacional, fez com que um membro do governo pedisse que o nome da jovem fosse revelado. O pai da jovem autorizou que se soubesse o nome da filha, dizendo "Queremos que o mundo saiba o seu nome. Estou orgulhoso dela. Revelar o seu nome dará coragem a outras mulheres que tenham sobrevivido a este tipo de ataques. Elas encontrarão forças na minha filha. O nome dela é Jyoti Singh Pandey." Estilhaçar a invisibilidade! O estigma cultural numa sociedade profundamente patriarcal como é a indiana impede que muitas das vítimas denunciem os crimes de que são vítimas. De acordo com os números oficiais, os casos de violação denunciados na Índia aumentaram drasticamente nos últimos 40 anos, de 2 487 em 1971 para 24 206 em 2011. Só em Nova Deli, foram denunciados 572 casos em 2011 e mais de 600 em 2012 (1). O jornal inglês Guardian refere que, em 2012, os 635 processos de violação resultaram numa única condenação. Estilhaçar a invisibilidade! A indignação, a revolta e as movimentações de organizações de direitos das mulheres na Índia não são de hoje, mas o caso da jovem Jyoti Singh Pandey foi a gota de água que fez transbordar o copo e que trouxe multidões para a rua em todo o mundo e na Índia. Kavita Krishnan dirigente de uma ONG de defesa dos direitos das mulheres na Índia refere que as mulheres ainda precisam de se justificar se estão na rua à noite dizendo que "ficaram a trabalhar até tarde" e é frequente os pais alertarem as filhas para "não se vestirem de determinada maneira"! "As mulheres têm direito à liberdade. E a liberdade sem medo é aquilo que precisamos de proteger e respeitar." (2). Estilhaçar a invisibilidade! Na Índia e em todo o mundo. E também aqui em Portugal. Quando falamos da violência sobre as mulheres, quando a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta – desde 2004 apresenta os dados do Observatório das Mulheres Assassinadas (www.umarfeminismos.org), não só divulga os números e os nomes das mulheres assassinadas anualmente em Portugal, como sensibiliza toda a população, implicando-nos a todos e todas a não silenciar um problema que é social e não apenas das mulheres que são vítimas de violência. "Quando maltratam uma, maltratam-nos a todas!" é o lema de uma campanha promovida por uma ONG de mulheres num país da América Latina. Estilhaçar a invisibilidade! Porque a violência é transversal a toda a sociedade, em todos os estratos sociais e em todos os países, há que lutar contra ela. É esse o papel das organizações. É esse o papel dos indivíduos: homens e mulheres.
Almerinda Bento
Militante do Bloco de Esquerda
Membro da Direcção da UMAR
Membro da Coordenação Portuguesa da Marcha Mundial das Mulheres
Notas:1) CNN, 3 Janeiro 2013 2) Revista 2 Público, 6 de Janeiro de 2013 |
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