Angela Merkel declarou há semanas atrás que “Portugal tem de passar
pela recessão”! A naturalidade da expressão não perturbou os gestores
assumidos do crime social e económico contra o povo.
“Portugal tem que passar pela recessão”, Angela Merkel
I
Na magna manifestação de revolta contra a troika que em
15 de setembro encheu as ruas de Portugal, podemos descobrir, para além
do seu poderoso significado político, um significado de efeméride que é
curioso sublinhar. Exatamente há 4 anos, a 15 de setembro de 2008, o
monstruoso banco Lehman Brothers declarava falência marcando o início
e, de certo modo, as características nucleares da crise que devasta a
economia e a vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras: a
impunidade da finança face aos crimes brutais de que é responsável. Uma
semana depois da falência, os executivos, em Nova York, distribuíam
entre si 2,5 biliões de dólares em bónus. Mais ainda do que os
dividendos de acionistas, o atiçador da atividade financeira, no casino
global em que transformaram o mundo, são os bónus dos executivos
decorrentes da sua criatividade tresloucada em investimentos de risco a
que sabem estar totalmente imunes. Os riscos são absorvidos pela
imensidão dos inocentes que, no seu trabalho produtivo, são apanhados
mas malhas da armadilha que, contra a sua vontade, os arrasta para a
insolvência familiar, o desemprego, a perda da habitação, dos direitos
sociais e políticos que supunham ter adquirido.
Quando Thatcher e Reagan deram forma política e
económica à ideologia do mercado sem limites de Hayek e de Friedman, e
dos Chicago Boys que beberam e difundiram a sua doutrina letal, os
executivos ganhavam 10 vezes o salário médio no Reino Unido e nos EUA
43 vezes o salário médio. Em 2007 ganhavam, respetivamente, 100 e 400
vezes mais que o salário médio.
A crise de 2008 obrigou o mundo da finança a reformar o
cânone ideológico e os Estados – que deviam garantir apenas a repressão
e as privatizações para o mundo dos negócios sem regras poder fluir
vitoriosamente - foram chamados, sem rebuço ou sinal de atrapalhação
racional, a repor na íntegra a verdade neoliberal. Assim, o que a
liberdade absoluta do mercado tinha feito esboroar-se por
incompatibilidade radical com as necessidades objetivas das sociedades,
está a ser reposto nos eixos ferrugentos e empenados com o recurso à
capacidade política e jurídica, coercitiva, e cada vez mais repressiva,
dos Estados. Financiamento da finança! Assistimos pois ao esbulho dos
fracos rendimentos do trabalho em economias cada vez mais débeis e sua
transferência direta para o capital. Os estados formalmente democráticos
estão a deixar de sê-lo mesmo no pouco que sempre foram, enquanto
instrumento privilegiado da burguesia para assegurar o máximo lucro.
II
Até 2008 o neoliberalismo foi singrando na sua via de
destruição das economias e de irracionalismo tendo como sustentáculos
colaterais a guerra, a venda e tráfico de armamento e o tráfico de
droga. Os negócios foram correndo com os Estados a cumprirem
pacatamente a sua estrita missão: privatização e repressão.
A crise de 1973 tinha já dado lugar às primeiras
experiências práticas da doutrina que os Chicago Boys, verdadeiros
cavaleiros do Apocalipse e mensageiros do império estadunidense,
transportaram para o Chile e a Argentina. Aí, com muita pena dos
zeladores da democracia e dos direitos humanos, a doutrina teve que ser
imposta com os generais, sempre prontos para defender a pátria:
milhares de assassinados, de sequestrados e desaparecidos foram o preço
a pagar pelo raiar da nova aurora, o “capitalismo do desastre”.
A “Doutrina do Choque”, assim lhe chama Naomi Klein.
Ela repercutiu-se ao longo destes quarenta anos pelas
sete partidas do mundo, passando por crimes hediondos como os do Chile e
Argentina e apocalípticos como os da guerra do Golfo e da invasão do
Afeganistão e do Iraque, sempre orientados pela histérica bússola do
lucro máximo e da destruição necessária.
A destruição de vidas e património é, na realidade, uma
sequela. A verdadeira destruição perseguida é a das forças produtivas
numa epifania ruidosa ao irracionalismo do capital obrigado a produzir
sem necessidade o que terá de destruir sem piedade.
Nos países avançados, com elites duradouramente
reprodutivas e sustentadamente corrompidas e corruptoras, corruptas
enfim, a bestialidade encarna formas relativamente sofisticadas e
inteligentes embora estúpidas na sua aparência imediata. A
transferência dos, cada vez mais parcos, rendimentos do trabalho para o
capital destina-se a assegurar a reposição plena da economia de
casino, financiando a banca antes da capacidade produtiva e impondo a
baixa estabilizada dos salários reais, diretos e indiretos (serviços
públicos, estado social, pleno emprego, contratação coletiva) e a
captura do investimento do trabalho na segurança social, como única
alternativa para os empreendedores pletóricos de iniciativa criadora.
Angela Merkel, que todas as noites sonha que é a Dama de
Ferro, a incondicional amiga de Pinochet e destruidora dos sindicatos e
dos serviços públicos no Reino Unido, declarou há semanas atrás que
“Portugal tem de passar pela recessão”! A naturalidade da expressão,
impondo uma situação declarada como obviamente necessária, não perturbou
os gestores assumidos do crime social e económico contra o povo nem
mesmo aqueles que, depois de atirarem a pedra, escondem a mão.
III
Agora, no seguimento, vem o ministro da economia boche
proclamar que “é tempo de termos em atenção a economia de Portugal”,
sinal de que a propaganda ainda continua a ser escolhida como fator de
dissuasão do que não pode ser dissuadido: o sentimento de revolta da
imensidão popular. Os rastejantes ministros do governo português com o
ministro Santos Pereira à cabeça, logo vieram dizer que este é o prémio
por estarmos todos empenhados em levar a Nau Catrineta a bom porto,
embora os marinheiros já comam a solas dos sapatos demolhadas.
O plano, posto em prática pela primeira vez por Nixon,
Kissinger e Pinochet em condições de pressão e temperatura diferentes, é
desde aí rotineiro: desestruturar as sociedades, liquidando ou
enfraquecendo brutalmente o estado social e os serviços públicos,
provocando uma situação de insuportável carência para, de seguida,
“apostar” na economia acabada de ser liquidada.
Este o melting pot para tentarem elidir a luta
de classes que se intensifica e revela, cada dia que passa, a
impossibilidade de conversão dos desesperados e revoltados em
entusiástica tripulação da barca sem leme.
Este o pântano onde mergulham, coaxando, as rãs e os sapos que se revezam a dar ares de vida onde reina a putrefação
“Enfunando os papos,/Saem da penumbra,/Aos pulos,os sapos./A luz os deslumbra” (Manuel Bandeira)
IV
Temos, então, que depois da censura expressa sem
equívoco possível por um milhão de portugueses no dia 15 de Setembro e
mais uma vigília de quase vinte mil a 21 do mesmo mês, vaiando a
inconsequência paródica do Conselho de Estado, subordinado a um
comunicado público previamente elaborado, sentiu-se um estremecimento
na política doméstica: o Partido Socialista que anunciara votar contra o
Orçamento e propor uma moção de censura ao governo subordinada ao tema
TSU, mantém a firmeza anti-orçamental mas recusa alinhar numa moção de
censura das oposições dado que o governo deixou cair a TSU. Como se
diz em língua de trapos,e afirmou Tozé Seguro, a coerência exige que
não censure o Governo que lhe deu a enorme satisfação de ter recuado no
escândalo tão escandaloso que moveu os mais empedernidos e
credenciados exploradores do trabalho alheio.
Portanto, todo o esbulho sistematicamente criticado pelo
PS, embora reconhecendo coerentemente a necessidade de cumprir o
programa da troika que exige tal esbulho, toda a enorme repulsa
manifestada na rua, não são suficientes para o PS censurar o governo
conjuntamente com a restante oposição. O PS não consegue ir além da
anedota enquanto dita oposição. A isso o obriga a sustentada vocação
dos seus lídimos dirigentes que, uma vez prestado nobre serviço
público, ingressam a bom ritmo nas hostes da finança e das grandes
empresas sugadoras de rendas do Estado – António Vitorino, Jorge
Coelho, Armando Vara, Pina Moura, Fernando Gomes…, a lista é longa. É
essa vocação e os perenes laços que ligam os que partem aos que ficam a
defender a honra do convento, que se sobrepõe à eventual dedicação à
causa pública que seria suposto determinar as políticas de um partido
que se reclama da oposição; bem sabemos que não a uma política, que não
à troika,que não ao capital, mas muito simplesmente da oposição a não
estar no governo. Mas mesmo aqui entramos no reino da falência
sistémica porque, pelos vistos, o PS também não quer ir para o governo
para defender o memorando da troika com todo o entusiasmo, ponderação e
legitimidade total, sublinhe-se. O PS não quer eleições, está visto. O
PS quer ladrar e deixar a caravana passar. O PS tem medo do milhão que
ocupou as ruas, tem medo dos vinte mil que assobiaram o Conselho de
Estado, o PS tem medo da democracia. O PS quer um dia ir para o governo
quando puder dizer o que Passos diz de Sócrates: não posso fazer mais
nada, deixaram-me esta pesada herança. Não é que a herança não seja já
insuportavelmente pesada, mas ainda não temos morto. O PS quer esperar
pela morte do Governo, mesmo que isso signifique a desgraça calamitosa
para os portugueses e Portugal. O PS quer um regime de “faz-se o que se
pode”, não quer assumir a responsabilidade de dizer alto e pára o
baile, o povo o disse e nós vamos responder aqui estamos. O PS está
instalado. Pode ser que o seu eleitorado o deixe a falar sozinho. A
vida é cruel e o povo é ingrato.
V
A necessidade de um governo de esquerda impõe-se pela razão, pelo sentimento e pela exigência de um povo ultrajado e espoliado.
A censura foi e é feita na rua. Claro que é, está a ser. Mas a representação parlamentar não deve
fazer eco dessa censura? O Parlamento tem vida própria, claro; mas tem
vida autónoma? Claro que não. “Os políticos” então não respondem ao
apelo popular? Há agendas particulares? E objetivos também? Claro, é
isso que caracteriza a direita e o centro. Mas a esquerda preserva-se
ou expõe-se? A retórica satisfaz-se a si própria ou apenas tem
significado se representar a opção e a acção populares nesta luta de
classes que se não se compadece com abstenções violentas nem com
celebrações de harmonias troikianas, também não contempla cálculos
particulares.
A oposição à troika deve cortar todo o espaço que
permita aos mandantes do crime proclamarem um êxito com o pretexto da
demonstração de passividade institucional
A doutrina Merkel falhou na rua. O choque brutal não foi
capaz de manter o medo inicial e o povo respondeu com a ousadia de
quem quer radicalmente mudar. De quem não apenas se revolta mas integra
desprezo e ódio por quem não merece qualquer respeito nem justifica
qualquer ilusão.
A diferenciação das bases sociais e políticas dos que
não confrontam o crime está a materializar-se dando consistência à
clarificação da luta de classes.
O Bloco de Esquerda tem consciência plena do seu papel e
a sensatez necessária para convocar a esquerda política a juntar-se à
esquerda social que desponta vigorosa. Os próximos tempos ajudarão
ainda à estruturação da nova esquerda europeia alicerçada nas diversas
esquerdas.
A luta pela democracia soberana como fundamento da
decisão nuclear sobre a distribuição dos rendimentos não será fintada
ou armadilhada nem pelo apelo à morigeração da austeridade nem pela
redoma da pátria de todos os portugueses.
A grandiosa manifestação convocada pela CGTP, no passado
sábado, dia 29 de Setembro, mostrou a consonância do movimento laboral
organizado com o sentimento de luta anti-troika que, espontaneamente,
ocupou o espaço privilegiado da democracia: as ruas e praças do nosso
país.
Mário Tomé
A Comuna
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