sábado, abril 26, 2014

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25 abrilSem o S de socialismo não se entenderiam as paixões e a acesa luta de classes de 74/75 e as referências culturais que transformaram mentalidades antes, durante e depois da revolução dos cravos.

Artigo de Luís Fazenda

"O MFA propõe ao Povo Português o caminho para o Socialismo. E desde logo define o socialismo como o sistema político no qual os meios de produção, a riqueza criada pelo trabalho estão ao serviço das classes trabalhadoras. E sem ambiguidades afirma que a liberdade do indivíduo apenas é possível no socialismo. A liberdade no socialismo. E recusa o sistema capitalista, de exploração do homem pelo homem, incluindo na sua forma mais enganadora, a democracia burguesa, que procurou, através da alienação dos valores humanos, prosseguir essa exploração, recuperando o sistema."
(excerto da declaração da Assembleia do MFA, na noite de 11 para 12 de Março de 1975)

A revolução de 74, e o 75 da luta do povo, não se confinaram, como se apregoa com insistência, aos três D's, de democratizar, descolonizar e desenvolver. Ousou-se ir mais longe, mesmo que muitos o procurem reduzir a um episódio menor ou um acidente de percurso, e o S, de Socialismo, esteve no caminho dos nossos passos.
Sem acentuar este aspeto o 25 de Abril que marcou decisivamente os últimos vinte anos da vida portuguesa ficaria incompreensível.
O Mistério Constitucional
Não se entenderia como se passou de uma Constituição fascista de 33, inspirada numa versão reformista de Mussolini, para uma versão reformista de Marx. Não se entenderia porque a burguesia impôs a via capitalista no quadro dum capitalismo extremamente dependente do capital internacional, desde 76 por três vezes já negou a "carga socialista" da Constituição, em outras tantas "revisões", se prepara para fazer a 4ª revisão, e não desarmará enquanto não impuser uma nova Constituição, inspirada numa versão reformista de um qualquer Popper temperada com encíclicas papais.
Sem o S de socialismo não entenderiam as paixões e a acesa luta de classes e  as referências culturais que transformaram mentalidades antes, durante e depois da revolução dos cravos.
Anestesia
Não se tenciona nestes apontamentos fazer história, apenas dizer alto lá aos corifeus do regime que embrulham o fio do tempo e dos factos num nevoeiro de análises pretensamente científicas, de facto vulgares, destinadas a arranjar desculpas pelos "excessos" de Abril, a anestesiar a participação popular. Eis um exemplo do revisionismo histórico: "Nascida sob o signo de uma revolução sem sangue, a III República portuguesa não pode furtar-se ao legado de quase cinco décadas de totalitarismo e isolamento internacional, nem escapar à influência das clivagens que então rigidamente opunham, de cada um dos lados do muro de Berlim, duas mundividências, dois sistemas, duas visões da Constituição, da lei e da justiça." "Tendo nascido separadas Constituição e Europa puderam tornar-se siamesas, embora com a precisa feição transformada que ambas têm 20 anos depois de 74". Este texto não é de nenhum dador de sangue do Tarrafal ou das colónias, mas de um dos revisores oficiais das letras constitucionais, José Magalhães, atira as "culpas" do radicalismo da Constituição de 76 para Salazar e a URSS, exalta as revisões sem sangue e de bisturi em punho antecipa já o futuro: "De facto nem a Comunidade Europeia é hoje o ser que despontava no Tratado de Roma, nem o ouvido mais apurado conseguirá distinguir no éter os hinos  que em 2 de Abril de 1976 saudaram na Constituição a Magna Carta de um socialismo português. Este facto, ignorado por diversos discursos constitucionais, só por ventura explicável pela persistente fixação a um modelo comunitário já superado (e porventura a uma Constituição já inexistente) e por uma perigosa distância em relação à feição real do ente comunitário". Impante, o autor adivinha (?) uma 'constituição europeia' e um 'foral para portugal' com p pequeno.
Como se pode esquecer a guerra de libertação das colónias que apodrecia o exército do colonial-fascismo? Como podemos esquecer o apoio da NATO a Salazar e Caetano? Como se pode esquecer as conquistas populares de Abril, turbilhão onde "o povo é quem mais ordena", que obrigam a ala esquerda do MFA a sancionar nacionalizações, reforma agrária, comissões de trabalhadores, órgãos populares de base? Como se pode esquecer que a Constituinte legislou sob pressão popular?
O primeiro ensaio da luta pelo socialismo, o S que faltou ao programa do MFA, não foi produto de nenhum arcaísmo pelo isolamento e atraso português, ou a uma imposição do leste. Para democratizar, descolonizar e desenvolver, as massas populares que pretendiam uma sociedade nova confrontaram-se com monopolistas e latifundiários, que eram o esteio do fascismo e do colonialismo, puseram em causa o seu poder e propriedade. A marcha a trás desse processo, operado desde o 25 de Novembro de 75, deve-se, em primeira mão, à matriz ingénua do socialismo dos capitães e, em segunda mão, ao isolamento internacional, incluindo da URSS, a que foi votada a revolução portuguesa, sob ameaça de golpe fascista ou ocupação estrangeira, que pesou na vacilação e entrega dos reformistas civis e militares ao imperialismo de Brandt ou Kissinger.
Tempos e Modos
Hoje vários historiadores procuram fundamentar que o fascismo não era fascismo. Teria sido uma 'ditadura branda', quase 'familiar', autoritarismo vá lá, 'ruralizante',  o totalitarismo do ignóbil e apelidado Estado Novo estaria limitado pelo catolicismo protector da pessoa humana.
Contudo não explicam como a Constituição de 1933,  o Estatuto do Trabalho Nacional, a legislação corporativa (para a "conciliação" do capital e do trabalho) e colonial foram quase decalcados de Mussolini. Preferem ignorar que o fascismo é uma ditadura terrorista do capital financeiro, independentemente da sua forma juridicidade, dimensão e longevidade. Banqueiros e industriais, colonialistas, foram o suporte do salazarismo onde a PIDE e a Censura eram as traves do regime. "Mandadores sem lei" foram os émulos de Salazar e Caetano, a classe dominante. Um povo e um país exilado nele próprio sofreu o capitalismo de miséria e uma opressão contínua. Salazar chamava-lhe a 'democracia orgânica' mas a largura do desejo de eleições livres era do tamanho da 'orgânica de Caxias'. Os cultores do regime incensavam o chauvinismo do império colonial e da raça.
A resistência clandestina, especialmente no pós-guerra, aderiu ao socialismo. O neo-realismo (de facto realismo socialista) moldou a intelectualidade e a cultura de resistência. Catarina Eufémia pode ser um símbolo, tanto quanto os "Esteiros" de Soeiro. O republicanismo e o liberalismo perdiam progressivamente peso na oposição democrática tanto como as correntes culturais descomprometidas do modernismo, surrealismo e outras. Estava criado o cadinho político e cultural, catalizado pelo Maio de 68, nas franças da emigração política, que haveria de sorrir em Abril de 74, com a geração da Inter, dos milicianos e do Zeca.
Passado ou Futuro?
Há quem diga, como Eduardo Lourenço, que "o PREC foi uma revolução póstuma". Segundo o ensaísta afamado, o socialismo teria já perdido a sua aura na Europa e outra Cuba na Finisterra era um anacronismo histórico. Não pensaram assim as potências europeias que tudo fizeram para esmagar no ovo o dito PREC e abriram a porta da CEE logo em 76 por razões exclusivamente políticas. Nesse tempo Portugal estava quotidianamente em toda a imprensa europeia e o exemplo da revolução dos cravos animava a esquerda europeia, desiludida com a social-democracia e com o pseudo-socialismo de Brejnev. Curiosamente, hoje só na imprensa desportiva encontramos referências habituais a Portugal e a crise mais esquerdina que aí se topa é o drible canhoto de Futre.
A revolução não foi póstuma no sentido em que impôs um figurino democrático, mesmo no capitalismo, que é o mais avançado da Europa. E apesar do regime político ser já uma sombra do passado, faz ainda a inveja de toda a esquerda europeia.
A revolução não foi póstuma no sentido em que foi a última grande mobilização nacional, em que os dias eram curtos para a participação nos "impossíveis do futuro". Nada era anónimo, das ideologias às pessoas, das milhentas siglas sabidas de cor, a consciência da necessidade não era virtual, todas as classes falavam a sua linguagem, jogavam tudo na luta. O que Portugal tem de moderno, em padrões 'ocidentais', sindicatos livres, abertura de costumes, igualdade na lei entre sexos, informação mundial, espírito pacifista e democrático, muitíssimo acima dos americanos ou alemães, deve-o ao PREC. Basta pôr o pé no estado espanhol para ver a diferença. Porque a liberdade não se dá, conquista-se. De então para cá, a burguesia nem com o 'mito do sucesso', ou com os sucessivos 'desafios europeus', conseguiu levantar as energias populares numa torrente de transformação.
A revolução foi antes de mais uma revolução antifascista e anticolonial vitoriosa. A revolução foi, depois de tudo, premonitória. O poder que Caetano não queria "que caísse na rua", e Spínola bem soube o que isso era, é sempre um poder frágil quando exercido contra os interesses populares. O PREC foi premonitório de uma vaga de revoluções europeias. A começar pela portuguesa. Vinte anos são apenas um soluço no tempo de incubação de novas energias. Porque será que na França, onde se recolheu Eduardo Lourenço, o espectro do Maio de 68 paira de novo e a palavra anti-fascismo tornou a ter sentido?
O PREC foi premonitório de uma cultura popular, da música e do jornalismo à pintura, do teatro à alfabetização, do jogo popular e do desporto, num múltiplo de registos de "expressão sem condição", de um designo de emancipação social. O fado cantou-se em cima de tractores, Trás-os-Montes foi cinema, Siza fez riscos nos monturos das barracas onde "a cantiga era uma arma contra a burguesia". A guitarra de paredes fez-se ao Mundo.
O país conheceu uma "normalização" prolongada de um regime tecnocrático-burguês. A burguesia fez-se corresponder na lei, sempre com atraso, as diferentes fases: afastamento dos militares democratas da área do poder, o fim das nacionalizações irreversíveis, a submissão da ordem jurídica interna à legislação da União Europeia.
Pequenos Passos
A ficção política agradável à classe dominante tem sido a da estabilidade das instituições. Correspondendo à fraqueza estrutural do capitalismo português extremamente dependente dos oligopólios europeus, o processo político português tem guinado à direita pelo método dos pequenos passos.
Numa primeira fase do jogo parlamentar entre o PSD, o CDS e o PS. Numa fase ulterior, de governamentalização laranja, sempre espaldados no consenso europeu e na vigilância da NATO. Teorizou-se o "Governo ao centro", sempre mais à direita, arrastando a social-democracia para patamares de compromisso também mais à direita. O cavaquismo, por todos os Pachecos e epígonos, teoriza o governo forte, esvaziando a inter-dependência das instituições democráticas prevista no suposto semi-presidencialismo da Constituição. Chega, actualmente, mesmo a sugerir um sistema de eleição indirecta de um Presidente quase sem poderes, e um sistema eleitoral onde na prática ¼ da população, contando com a abstenção, ganharia uma maioria de mandatos na AR. Nem sequer é inédito, desde sempre a burguesia portuguesa fez tradição de governos fortes, nunca foi estruturalmente parlamentarista como a Inglaterra, ou presidencialista como a América dos States.
Vive-se, todos os sentem, o esgotamento do modelo político coincidindo com o modelo económico exportador posto em marcha desde 76. A política à portuguesa, a avaliar pelos jornais, é uma novela de cordel de feira de vaidades dos partidos maiores, onde a resistência da esquerda, a crítica social, as manifestações populares, a crise estrutural, são displicentemente tratadas como marginalidades ou "disfunções" do sistema. O pragmatismo das conveniências da direita e os consensos a qualquer preço da social-democracia, a par com as incertezas duma Europa em aceleração de contradições nacionais e sociais, deixa à generalidade da opinião pública a sensação de falta de futuro e de um jogo de poder viciado que como denunciou há alguns anos Maria Velho da Costa não passa de "marcelismo ácido".
Mais uma vez o subterrâneo cultural prenuncia a ruptura. A última década foi a entrada em cena e em força da aculturação por TV, em geral medíocre, estrangeirada, A elite erudita da direita cultivou o intimismo, o pos-modernismo, e outras variantes de arte mais ou menos cosmopolita, onde o provincialismo mais parolo esquece o país e a sua gente, faz a usura política dos intelectuais e o mecenato de fachada. A direita mais conservadora venera Agustina.
Redescoberta
Mas no mesmo período, acentua-se a redescoberta da portugalidade, na literatura, com Saramago entre outros, na investigação histórica, na movimentação em defesa do património, no enriquecimento da etnografia, na música jovem, na pintura da paisagística, no ensaio, no cinema, no artesanato, na arquitectura. Essa redescoberta da portugalidade, difusa, heterodoxa, é anti-chauvinista, pontapeia complexos e questiona tabus da guerra colonial, da jactância dos fidalgotes que sempre se abastaram das mesas do orçamento, confronta a razão e religião, rapa dos porquês das emigrações forçadas ou da hipocrisia do "ciclo do dinheiro" por que passamos.
Essa cultura que se vai fazendo, desalinhada e aos solavancos, que não tomou ainda a Escola, é a seara nova duma alternativa à 'normalização burguesa' que entope pelo seu pró-imperialismo servil.
Vinte anos depois já se pode ver um novo S, que entretanto aprendeu com o mundo e com o Portugal no sue triângulo atlântico, virá das entranhas da sociedade, não já pelas colónias que mataram o ser, o pão e a vontade, mas pela Europa que aliena a união dos povos e trunca as liberdades.
É escusado retorquir que não passa de um sonho ou bandarrismo gratuito: desafiam-se os analistas que já têm o 'fim da história' na barriga a desnudar as contradições da sociedade portuguesa. Serão capazes?
Luís Fazenda
publicado originalmente no número comemorativo "Abril 20 anos" da revista
Pespectiva. 5 (abril 1994) 10-13.

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