quarta-feira, novembro 09, 2011

Da Crise da Dívida à Krisis da Dúvida Versão para impressão
krisis
Como a inscrição constitucional encapotada dos limites aos défices orçamentais e às dívidas públicas, através do Pacto de Estabilidade e Crescimento, provou ser altamente eficaz em termos de coordenação económica e prevenção de instabilidades sistémicas, os líderes europeus estão agora a pensar usar a mesma táctica para a questão do emprego. A ideia é multar os países que apresentem taxas de desemprego acima de 10%.
Do ponto de vista estritamente conceptual, do quadro teórico que informa a governação económica da União Europeia e da zona Euro, acrescentar tal provisão ao par défice-dívida já visados pelo PEC é uma redundância, uma vez que, nesse quadro, tudo o que um Estado pode (e deve) fazer para assegurar níveis de emprego adequados é manter finanças públicas equilibradas e deixar o mercado fazer o resto.
Se limitarmos a análise desta redundância a considerações de ordem lógica ou de coerência teórica, não deixaremos de evidenciar contradições da governação económica europeia; mas, nesse caso, a nossa crítica fará pouco mais que ironizar o nível intelectual do debate entre os líderes europeus. Em contrapartida, esta redundância ganha significado no quadro de uma radicalização filosófica do conceito de crise.
Contrariamente ao seu uso comum, crise não significa a falência funcional de uma dada estrutura; não se reduz à manifestação epifenoménica de um sistema que atingiu a sua maturidade histórica. No original grego, krisis significa julgamento, escolha; significa o confinamento progressivo - mas radical - de todo o horizonte temporal para um ponto único que é uma situação de Julgamento, de tomada de decisão a que não se pode escapar antes que seja possível prosseguir.
A radicalidade da escolha implicada no momento de krisis está intimamente ligada à modalidade de adesão ao paradigma teórico em questão: não há krisis se o curto-circuito for regional, se for apenas o mudarmos de ideias relativamente a um assunto em particular, ao lermos um livro num café ou no autocarro ou numa conversa com amigos; a krisis é krisis porque é total, porquanto abrange radicalmente todo o quadro teórico que estruturava a existência até então. Na krisis, está em jogo uma escolha que é da ordem do tudo ou nada.
Os dois processos típicos de ocorrência de krisis são a crise de fé e a revolução científica. No primeiro caso, as implicações de totalidade são ditadas pelas próprias especificidades da modalidade de adesão intelectual que a fé é; no segundo caso, são as próprias condições subjectivas (i.e. inerentes ao sujeito do conhecimento) de possibilidade do conhecimento em geral que são revistas. A krisis da zona Euro é do primeiro tipo.
Contrariamente à ciência, a crença é uma forma de adesão a uma tese (ou conjunto de teses) que não exige nem procura fundamentação, e que, mais importante, só pode existir enquanto tal justamente na medida em que não exige nem busca uma tal fundamentação. Quer dizer que a fé é um fenómeno total[1]: por um lado, é a entrega a uma tese que dá forma à totalidade da existência; por outro, essa entrega à universalidade é, também ela, total e incondicional – não há acreditar “mais ou menos”. Se não há acreditar “mais ou menos”, então a dúvida nunca pode ter um carácter somente regional; antes, radicalmente, não pode haver dúvida sem que a totalidade da fé fique irremediavelmente comprometida.
Para a contemporaneidade em que se inscreve, a economia política da união europeia denota um fervor religioso capaz de arrumar a um canto as mais denodadas expressões de fé.
Wittgenstein resumia assim o existencialismo cristão de Kierkegaard: “apresento-te uma vida e agora vê como te relacionas com ela”. Esta é a mesma filosofia inerente à economia política da União Europeia. O Tratado de Maastricht diz-nos: “apresento-vos um mercado único e os trâmites para que qualquer coisa como uma moeda única seja possível e agora vejam como se querem relacionar com eles”. Os mercados são a ordem social dada, exogenamente (divinamente) determinada e inquestionável; quaisquer ajustamentos terão de se inscrever no seu âmbito.
Acrescentar um “mandamento” relativo a níveis adequados de emprego, a par dos mandamentos relativos ao défice e à dívida, é neste sentido muito mais do que mera redundância teórico-conceptual. Tem carácter de dúvida. Significa que a equivalência entre finanças públicas equilibradas e níveis adequados de emprego deixou de se processar automaticamente. Essa equivalência era automática graças a um processo de fé, de adesão espontânea e inquestionada à tese de que o mercado é ordem e mecanismo de coordenação social natural.
Mas a crise de fé não é um processo instantâneo nem, muito menos, pacífico. Porque pertencem a domínios cognitivos incomensuráveis, a fé defende-se da instalação da dúvida com mais fé ainda – a crença com a radicalização do dogma. A História está cheia de inquisições e contra-reformas a prová-lo. E se esta redundância parece denotar o esgaçar de uma fé, o estilo reactivo (punitivo) em que para já se exprime (sanções de 0,1% do PIB - e, se dependesse de Merkel, suspensão de direitos de voto no Conselho - para os incumpridores) revela o carácter violento que terá a resistência entreposta a este processo de confinamento para o momento de krisis que a crise das dívidas colocou em marcha. Cá estaremos para catalisar as forças sociais, para que sejam abertos rombos de fé e se precipite a krisis da hegemonia liberal.


[1] A fé é, neste sentido, sempre um processo “católico”, no próprio sentido do termo – katholou: pertença ao universal.
A Comuna

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