Esperando os Bárbaros
| ImprimirNas fronteiras do Império, uma isolada civilização cujo medo maior e razão de ser consiste na ancestral espera pela invasão bárbara. Resenha do romance À espera dos bárbaros, do sul-africano J. M. Coetzee. Por Henrique Souza
Nas longínquas fronteiras de um imenso Império, ergue-se um pequeno centro urbano fortificado, completamente isolado pela distância da capital, mas suficiente para representar, diante dos bárbaros que habitam o outro lado da fronteira, o papel de degrau superior no processo civilizatório. A única autoridade civil e militar é um magistrado, que há décadas exerce pacatamente sua função procurando aplicar modernos valores humanistas. Não há sequer uma prisão na cidade, os poucos delitos registrados são punidos com algum trabalho obrigatório. Mas apesar da aparente tranqüilidade, a identidade coletiva daquela sociedade fronteiriça é baseada num medo ancestral: a ameaça dos bárbaros, povos nômades aborígenes que eram os antigos donos daquela terra. Há muito tempo que os bárbaros não passam de fantasmas, não se sabe nada de concreto sobre sua quantidade, sua organização ou localização, apenas se supõe que ainda vivem do outro lado da fronteira e planejam destruir o Império. Até que um dia essa rotina de uma contínua paz assustada é interrompida pela chegada na capital de um coronel com informações de que as tribos bárbaras estão se unindo e planejando uma guerra para derrubar o Império, e com ordens superiores concedendo-lhe plenos poderes para proceder às investigações necessárias para chegar à Verdade e acabar com o movimento subversivo. Este é o enredo inicial do romance À espera dos bárbaros, de 1980, do escritor sul-africano J. M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura em 2003.
Sem nenhuma referência geográfica ou histórica mais precisa que permita localizar os acontecimentos, o relato apresenta muitas semelhanças com o processo colonizador inglês na África, mas extrapola essa limitação para se tornar uma grande alegoria de qualquer processo imperialista em luta contra povos “bárbaros”, daí sua impressionante atualidade. Ou melhor, é ainda mais abrangente, trata-se de uma grande metáfora do poder, e nesse sentido se aproxima não apenas dos grandes debates políticos e sociais da atualidade, mas de questões éticas da própria vida cotidiana de cada um de nós que exercemos/sofremos o poder.
Ao menos três influências são notórias na obra: o texto teatral Esperando Godot, de Samuel Beckett (a tradução literal do título do romance seria “Esperando os Bárbaros”), no absurdo que se traduz numa espera eterna por alguém de quem nada se sabe. Enquanto Godot simboliza a salvação, os bárbaros representam o apocalipse, mas de algum modo ambas as esperas se encontram, ainda mais se levarmos em conta outra das influências: o poema À espera dos bárbaros, do grego Konstantinos Kavafis, que transcrevo ao final do texto.
Outra referência bastante presente é o grande romance O deserto dos tártaros, do italiano Dino Buzzati, sobre um jovem militar que dedica sua vida a servir numa fortaleza numa desértica região montanhosa para proteger a fronteira da invasão dos tártaros, sempre à espera da sonhada grande batalha que dará sentido à sua existência. Mas mais que uma homenagem ou reescritura baseada nas influências, a obra de Coetzee apresenta particularidades bem definidas que lhe conferem uma identidade própria.
A história é narrada em primeira pessoa pelo referido magistrado, de quem nunca chegamos a conhecer o nome. Sobre o temor difuso dos bárbaros, ele relata:
Tenho observado, em particular, que, uma vez em cada geração, infalivelmente, há um surto de histeria com relação aos bárbaros. Não há uma única mulher, ao longo da fronteira, que não tenha sonhado com a escura mão de um bárbaro saindo de sob a cama para lhe agarrar o quadril, um único homem que não tenha estremecido com a imagem de um bárbaro entregando-se à orgia em sua casa, quebrando os pratos, ateando fogo às cortinas, raptando-lhe as filhas. Tais sonhos são conseqüência do ócio excessivo. Mostrem-me um exército bárbaro, então acreditarei.
Pois esse temor difuso vai se transformando progressivamente num terror concreto com a chegada do coronel Joll e seus métodos para se chegar à Verdade, baseados em prisões arbitrárias e uma tortura física racionalmente desenvolvida, quase científica:
– Há um determinado tom – diz Joll. – Uma determinada entonação na voz de quem está dizendo a verdade. O treinamento e a experiência nos ensinam a identificar esse tom.
– O tom da verdade! Consegue captar esse tom na conversa cotidiana? Pode saber se estou dizendo a verdade?
– Não, o senhor me entendeu mal. Agora, estou falando somente de uma situação especial, uma situação na qual estou testando a verdade, na qual tenho de exercer pressão para descobri-la. Primeiro, eu detecto as mentiras, compreende? (é o que acontece), primeiro, as mentiras; então, a pressão, depois mais mentiras, mais pressão; aí, a resistência se rompe; mais pressão, e sai a verdade. É assim que se obtém a verdade.
O coronel Joll sai em expedição e retorna trazendo como prisioneiros uma dúzia de inofensivos bárbaros nômades, incluindo crianças, velhos e mulheres, mas com seus métodos persuasivos de obter a Verdade, acaba por conseguir extrair deles preocupantes revelações sobre a iminente invasão bárbara.
Há um aprofundamento na narração minuciosa dos sofrimentos impostos aos prisioneiros. Mais que a dor física propriamente, sua batalha diária pela vida consiste em suportar a sujeição às necessidades mais básicas do corpo: comer, beber, proteger-se do frio, aliviar-se, encontrar a posição em que se sinta menos dolorido, num processo de degradação moral em que se perde qualquer noção de dignidade humana, e mesmo as maiores humilhações perdem qualquer importância diante da simples necessidade de permanecer vivo.
Assim, o que parece uma metáfora geral sobre a força vai se particularizando num angustiante relato quase naturalista dos níveis de sofrimento e humilhação que o ser humano pode suportar e a que pode submeter outro ser humano, e através dessa descrição, quase que meramente física, emergem profundos questionamentos psicológicos sobre o que motiva cada um, torturador e vítima, mas sem chegar a explicações maniqueístas. O magistrado, que desde o início se coloca contra o abuso da violência, demonstra mais que tudo uma curiosidade perplexa diante das figuras dos torturadores: como fariam para depois voltar à vida cotidiana? Para se sentar à mesa e compartilhar o pão com a família e os companheiros? Qual seria seu ritual purificador? Como respiram, comem e vivem sem sentir sujas as mãos, sem sufocar? Mas as respostas nunca são tão simples como podem parecer à primeira vista. A crueldade se esconde muitas vezes, mais que sob um sadismo premeditado, sob o manto do descaso: Não é a malícia que os faz esquecer. Meus torturadores têm sua própria vida. Não sou o centro de seu universo.
Não se trata propriamente de um desejo de fazer sofrer, mas de uma necessidade de controle exercido em seu nível mais básico: o controle sobre o corpo. É a tradução do conceito de justiça ao nível físico:
Mas meus torturadores não estavam interessados em graus de sofrimento. Só queriam me mostrar o que significava viver num corpo, como um corpo, capaz de hospedar noções da justiça somente enquanto está ileso e são, que muito rapidamente se esquece delas quando lhe agarram a cabeça, introduzem-lhe um canudo pela garganta e derramam dentro dele litros de água salgada, até que a tosse, a ânsia de vômito e as contorções o esvaziam. Não vieram para me forçar a contar o que dissera para os bárbaros ou o que disseram eles para mim. E, assim, não tive oportunidade de lhes atirar ao rosto as sonoras palavras que já tinha preparadas. Vieram a minha cela a fim de mostrar o significado da humanidade, e foi muito o que me mostraram no espaço de uma hora.
Com o tempo, o magistrado vai percebendo que seus princípios humanistas, no entanto, não o isentam da responsabilidade sobre as atrocidades que ele próprio condena: Eu era a mentira que o Império conta para si mesmo quando os tempos são favoráveis, e Joll, a verdade que se impõe quando sopram ventos contrários. Dois lados da lei imperial, nem mais nem menos. Como podia ele pedir justiça para os bárbaros, se em última instância isso significaria não apenas libertá-los, mas devolver-lhes as terras que lhes haviam sido roubadas? Ele, que passara a vida aplicando e acreditando na justiça, vai se dando conta da contradição intrínseca ao próprio conceito: Justiça: uma vez pronunciada esta palavra, onde haveria de chegar?
Penso num jovem camponês que me foi apresentado, certa vez, no tempo em que eu tinha jurisdição sobre a guarnição. Fora condenado pelo magistrado de uma aldeia remota a servir durante três anos no exército por ter roubado galinhas. Tentou desertar após um mês. Foi preso e levado a minha presença. Declarou que queria rever a mãe e as irmãs
– Não podemos fazer tudo o que desejamos – expliquei-lhe. – Todos estamos submetidos à lei. O magistrado que o mandou para cá, eu mesmo, você, todos estamos submetidos à lei.
Ele me fitou melancolicamente, esperando a sentença, as mãos algemadas às costas, dois guardas indiferentes atrás dele.
– Sei que lhe parece injusto ser punido em virtude de seus bons sentimentos filiais. Você pensa saber o que é justo e o que é injusto. Eu compreendo. Todos pensamos saber.
Eu não duvidava, então, de que, a cada momento, cada um de nós, homem, mulher, criança e talvez até mesmo o pobre e velho cavalo que fazia girar a roda do moinho, sabia o que era justo: todas as criaturas, ao nascer, trazem consigo a memória da justiça.
– Mas vivemos num mundo regido por leis – disse a meu pobre prisioneiro –, um mundo em que levamos a pior parte. Nada podemos fazer. Somos criaturas desamparadas. Tudo o que podemos é tratar de manter as leis, todos nós, impedindo que feneça a memória da justiça.
Após essa lição, condenei-o. Ele ouviu a sentença sem nada dizer e a escolta o levou. Lembro-me da incômoda vergonha que sentia em dias assim. Saía do tribunal, voltava para casa, sentava-me na cadeira de balanço e ali ficava, no escuro, sem apetite, até a hora de dormir. “Quando alguns homens sofrem injustamente”, dizia para mim mesmo, “o destino dos que lhe testemunham o sofrimento é passar vergonha.” Mas a especiosa consolação de tal pensamento não me aliviava. Brinquei mais de uma vez com a idéia de renunciar a meu cargo, retirar-me da vida pública, comprar uma pequena chácara. Mas então, pensava eu, outra pessoa será designada para passar a vergonha do ofício, e nada terá mudado. E assim continuei no posto, até o dia em que os eventos me apanharam.
Mas a justiça se justifica em nome do Império, para evitar sua queda, como faz parte de seu próprio processo histórico:
Que terá tornado impossível para nós viver no tempo como peixes na água, como pássaros no ar, como crianças? Será culpa do Império? Ele criou a cronologia da História. Situou sua existência não no tempo liso, circular e periódico do ciclo das estações, mas no tempo íngreme da ascensão e da queda, do começo e do fim, da catástrofe. O Império que se condenou a viver a história conspira contra a História. Um único pensamento ocupa sua mente submersa: como não perecer, como não morrer, como eternizar sua existência. Durante o dia, persegue os inimigos. É trêfego e implacável, envia a toda parte seus cães de caça. Durante a noite, alimenta-se de visões desastrosas: o saque das cidades, a violência contra as populações, as pirâmides de ossos, os hectares de desolação. Uma visão desvairada, virulenta: caminhando no lodo, não estou menos infectado por ela que o fiel coronel Joll rastreando os inimigos do Império pelo deserto sem fim, a espada desembainhada para abater os bárbaros, um após o outro, até o último que encontrar, até matar, afinal, aquele cujo destino deveria ser (ou, se não o dele, o de seu filho ou de seu neto não nascido) o de galgar os portões de bronze do Palácio de Verão e tombar o globo com o exuberante tigre que simboliza o domínio eterno, enquanto, abaixo, seus companheiros aplaudissem e disparassem no ar os mosquetes.
Eu queria viver fora da História. Queria viver fora da História que o Império impõe a seus súditos, mesmo aos extraviados. Nunca desejei que a história do Império se infligisse aos bárbaros. Como hei de admitir que me deva envergonhar por isso?
Mas vivemos na História, vivemos na História que o Império impõe a seus súditos, mesmo aos extraviados. Chegarão os bárbaros? Não sabemos, mas talvez a própria espera já conduza à barbárie. Também é possível interpretar esta história como uma metáfora de como o indivíduo conduz sua própria vida em nossa sociedade, em como emprega seu tempo, ou espera. Me pergunto quantos de nós passamos a vida inteira à espera dos bárbaros… Mas sem bárbaros o que será de nós?
O que esperamos na Ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
Konstantinos Kavafis
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