quarta-feira, novembro 16, 2011

Marxismo e as Revoluções Científicas Versão para impressão

zwischenlandung
O materialismo é a filosofia da ciência. Dentro do campo das ciências, particularmente das ciências naturais, o critério materialista prevalece, até para os filósofos idealistas. É isso que nos ensina o especialista em filosofia materialista Olivier Bloch (1). É claro que os idealistas procuraram reservar para si tudo o que não fosse ‘ciência natural’, circunscrevendo o materialismo a esta, não o admitindo como filosofia. E a própria interpretação dos resultados das ciências naturais, fora do seu campo específico, era submetida pelos idealistas às suas metafísicas.
Quando Marx e Engels adoptaram uma concepção materialista e dialéctica da história, visavam superar o materialismo mecanicista. A este respeito importa ler a famosa 11ª tese sobre Feuerbach no seu contexto (1). “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” é uma tese abundantemente citada, mas esta é uma conclusão de uma crítica que começa assim, (1ª tese): “A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias - o de Feuerbach incluído - é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objecto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjectivamente. Por isso aconteceu que o lado activo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo - mas apenas abstractamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a actividade sensível, real, como tal. (…)”.
O materialismo histórico e dialéctico, designação posteriormente atribuída àquela concepção, é uma superação simultaneamente do materialismo mecanicista e da dialéctica idealista de Hegel. A visão dialéctica da dinâmica social é o avanço introduzido. Filosofia clássica alemã, economia política inglesa e política socialista francesa são fundidas na forma que inaugura o socialismo moderno, chamado à época socialismo racionalista crítico ou socialismo materialista crítico.
Nesta concepção, a própria relação entre o “ser” e o “conhecer” é uma relação dialéctica, mas “é o ser que determina a consciência”. E assim se rejeitam o apriorismo e o convencionalismo. Por um lado, as perspectivas aprioristas, de tipo kantiano, que consideram a existência prévia de “objectos teóricos da razão” independentes da experiência. Cabendo, nessa leitura kantiana e conservadora, um papel menor à dialéctica como mera “lógica da aparência”. Por outro, também não são aceitáveis as perspectivas convencionalistas em que de forma meio-arbitrária meio-lúdica se busca por “tentativa-erro” preencher as necessidades epistemológicas (do conhecimento científico).
A 8ª tese ajuda-nos a compreender isto “A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta praxis”. Ao ler isto e integrar toda a crítica do materialismo mecanicista como defesa da dinâmica (dialéctica) da realidade, compreendemos que as deturpações “cientifistas” do dito “socialismo científico” são o avesso do pensamento de Marx e Engels.
Socialismo científico foi uma expressão usada por Engels na obra Do Socialismo utópico ao socialismo científico (3). Contudo, esta expressão nada tem a ver com o dogmatismo “cientifista” cultivado pelo stalinismo, que se servia da “autoridade científica” para justificar o poder do regime que degenerou em “ditadura contra o proletariado”. Aliás, actualmente, há universidades na China que explicam, do ponto de vista do “socialismo científico”, por que razão a taxa de exploração na “República Popular” é gigante ou, nas suas palavras, que “enriquecer é glorioso”. Ou seja, debaixo da capa do nome “ciência”, pode estar muitas vezes uma visão acrítica do mundo.
Ao nível das chamadas ciências naturais, de um ponto de vista da luta ideológica, a batalha é de todas e todos os que pretendem o progresso científico contra os obscurantistas. O principal é a descoberta da verdade material da natureza. Essa descoberta envolve, como demonstrou Thomas Kuhn (4), a necessidade de revoluções científicas. O progresso científico não é puramente cumulativo, há momentos em que um dado paradigma científico esgota a sua capacidade explicativa e é superado, falsificando (muitas vezes pela base) alguns dos conhecimentos tidos por adquiridos. Esse movimento de avanço, esgotamento, refundação marca as épocas e, no geral constitui, um progresso. Vejamos aguns exemplos dessas tradições científicas apresentadas pelo próprio Kuhn: astronomia ptolemaica e astronomia coperniciana; dinâmica aristotélica ou newtoniana, óptica corpuscular ou óptica ondulatória etc.
Ao nível das ciências sociais e políticas, a luta pela verdade material tem uma dimensão acrescida, a dimensão do interesse social nelas envolvido. Aliás, note-se que este interesse social de classe interfere também nas ciências naturais, ao nível mais prático. Desde, ao nível das ciências da saúde, a prioridade dada à pesquisa da cura de certas doenças, que afectam as pessoas com mais recursos e que financiam a investigação, em detrimento da investigação de curas para doenças que afectam mais as populações pobres do terceiro mundo. Até ao próprio desenvolvimento das tecnologias da “obsolescência programada”, desde a crise de sobreprodução de 1929, apenas com o intuito perverso de produzir lixo e necessidade de compra de novos produtos. Impedindo, aliás, saltos tecnológicos pelo faseamento de diferentes versões intermédias do mesmo produto - os telemóveis são um ótimo exemplo, mas o mal é mais geral (5).
Retomando as ciências políticas, a luta entre paradigmas e pela afirmação de hegemonias paradigmáticas tem mais dificuldade em chegar a situações de estabilidade, mas é conseguida. Umas vezes, em parte importante das escolas, como o caso do (neo)realismo nas escolas de relações internacionais norte-americanas; essa perspectiva conservadora afirma-se a única científica. Outras vezes, é mais esmagadora, como na economia, em que há “a economia” e as outras são heterodoxias, por muito que haja provas materiais de gigantescas falhas da perspectiva económica hegemónica. Serve isto para dizer que nas ciências sociais o problema da falta de paradigma universalmente aceite não é de falta de maturidade das ciências sociais, como propõe T. Kuhn, mas antes da própria natureza do objecto de estudo: a vida social. Vale a pena repetir o início da 8ª tese: “A vida social é essencialmente prática”. Ou seja, as verdades em disputa envolvem as perspectivas de uma forma ainda mais condicionante que nas ciências naturais (e não esqueçamos a questão tecnológica).
Alguns, no passado e ainda hoje, querem erguer Kuhn contra o marxismo mas misturam a questão das revoluções científicas ora com um “cientismo” acríticos, inconsciente dos interesses que serve, ora com um nada científico obscurantismo relativista. Neste último caso, gémeo do primeiro, é a tese posmodernista do fim das grandes narrativas na qual tudo são discursos igualmente válidos, o progresso não existe e nada destingue: a militante socialista, o físico teórico e o bruxo. Dá vontade de generalizar uma resposta da militância feminista: “Eu serei pos feminista, no pos patriarcado”. A superação do paradigma da produção é uma questão de interesse e de prática, naturalmente esta é uma visão interna à própria perpectiva marxista, mas não há leituras extra-paradigmáticas. E a diferença entre exploradores e explorados, definida na teoria da mais-valia de Marx, só deixará de ser válida pela prática revolucionária da superação da própria exploração.

Bruno Góis

  
Notas

1 – Ver Olivier Bloch, «Materialismo e Ciência».
2 – Karl Marx, Teses sobre Feuerbach.
3 – Frederich Engels, Do Socialismo utópico ao socialismo científico.
4 –  Thomas S. Kuhn, A Estrutura das Revoluções Cientificas (Editora Guerra & Paz 2009); originalmente publicado em 1962.
5 – Ver, por exemplo, este artigo de Luís Leiria, A Apple “pensa diferente”?
A Comuna

0 comentários: