Orientação e Formação: ferramentas de libertação ou de proletarização? |
Ao longo das metamorfoses do capitalismo e à medida que muda também a concepção psicológica sobre o sujeito, as linhas entre o trabalho e a orientação acabarão pode fazer um jogo de afastamento e de aproximação contínuo e recorrente, com influências multiplas. Artigo de Moisés Ferreira Do capital humano à meritocracia Ao longo das metamorfoses do capitalismo e à medida que muda também a concepção psicológica sobre o sujeito, as linhas entre o trabalho e a orientação acabarão pode fazer um jogo de afastamento e de aproximação contínuo e recorrente, com influências multiplas. No período de expansão económica pós - II Guerra Mundial entra em campo a teoria de capital humano. Mais tarde, com o neoliberalismo meritocrático, surge a ideia de que o mercado proporciona lugares para toda a gente, mas as pessoas têm que merecer esses lugares. Discurso quase em recorrência com a predestinação calvinista subvertida pelo 'espirito do capitalismo': “Tenho o que mereço, tenho o que sou”. Entre a teoria de capital humano e o neoliberalismo meritocrático e 'competente', modificam-se não só práticas de orientação, como surge com força redobrada a ideia da formação profissional. Para a teoria de capital humano, a formação era uma forma de, investindo nos activos mais importantes das empresas, garantir mais rentabilidade, competitividade, produção e lucro. Para a ideia meritocrática, uma forma de tornar os indivíduos competentes, adquirindo competências específicas para deficits detectados. Se a orientação vocacional, em período de expansão económica com pleno emprego, alicerçada em teorias humanistas e outras económicas - de capital humano – optou pela centração no indivíduo, na sua realização, no activo como elemento mais importante da empresa; já em período de retração, e segundo o escopo meritocrático, passou a prescrever competências a alcançar para vencer na competitividade do mercado (Law, 1991). E nestes períodos encontramos uma tripla intersecção entre trabalho, orientação e formação. A prescrição de formação como forma de combater momentos de crise ou retração económica com aumento de desemprego não é filha do neoliberalimo (na década de 30 este discurso existiu nos EUA como uma das medidas de combate à Grande Depressão (Alaluf, 2007)); no entanto, a ideia de competência insere-se no discurso meritocrático surgido dos anos 80 (Stroobants, 2006) e evolui depois para a aquisição de competências, numa luta contínua contra a obsolescência, encarada, por vezes, como uma forma de aprendizagem ao longo da vida. É secundarizada a sociologia da aprendizagem e passa para primeiro plano a economia da formação como nexo sujeito-trabalho. Sousa (2011) ia ao encontro desta constatação quando dizia que a definição de competência utilizada pelo Parlamento Europeu denotava “uma mudança de ênfase no conhecimento como organizador do ensinar e do aprender para a ênfase na capacidade de o mobilizar para a acção individual, social e em contexto profissional”. No mundo desemprecário cabe o capital humano e a prescrição de competências? Já vimos que o cientifismo taylorista e as práticas de psicologia diferencial, psicotécnica e instrutiva, se alicerçavam na noção de que tanto os indivíduos como os ambientes sócio-económicos de trabalho tinham mais propriedades de estanquicidade e perenidade do que propriedades de mudança. Ao contrário desta visão parsoniana, a orientação vocacional integrou no seu corpo teórico a noção de desenvolvimento e mudança dos indivíduos; outros autores (e.g. Broffenbrenner) destacaram as relações ecológicas entre os indivíduos e os dispositivos micro e macrosistémicos (Guichard & Huteau, 2002) e é essa mesma envolvente que hoje em dia se caracteriza mais pela mudança e complexidade do que pela perenidade; “condenação à complexidade”, nas palavras de Azevedo (1999, cit in Crespo, Gonçalves, e Coimbra, 2001). Novas formas e organizações de trabalho e a construção de um desemprego e precariedade estruturais (Coimbra, 1997/98) parecem ser os estruturantes da nova face do capitalismo, mais conservador e menos liberal. No mundo desemprecário não há, por isso, lugar à economia de capital humano, quando o que se faz hoje é baixar o valor do trabalho e tornar os trabalhadores activos descartáveis e consecutivamente substitíveis. Não há também lugar à meritocracia ou ao liberalismo, quando se admite que o mercado não garante lugar para todos, muito menos garante mobilidade social ascendente a quem se qualificou. É, por isso, um mundo muito diferente, onde os dispositivos de orientação e de formação não podem já ser utilizados da mesma forma. A formação como prescrição para aquisição de competências específicas que tornem os indivíduos empregáveis é uma prática para uma realidade já inexistente. Hoje fala-se de competências para a empregabilidade e menos de emprego. Não será por acaso! Paremos para reflectir! Temos vindo a analisar etapas e metamorfoses no trabalho, no capitalismo e na orientação e formação, como linhas de intersecção com o trabalho. Temos vindo a identificar e a delimitar momentos de diferentes paradigmas e práticas em relação a essa relação trabalho-orientação-formação. Chegou o momento de considerarmos com mais atenção o presente, a realidade e suas contradições. Encontramos ainda uma narrativa bastante assente na meritocracia. Essa narrativa continua a destinar aos dispositivos de orientação e formação a detetação de deficits e a aquisição de competências como forma simples e directa de ser colocado no mercado de emprego, ainda que o mercado de emprego exiba um desemprego estrutural! Ao mesmo tempo, fala-se de aquisição de competências de empregabilidade, reservando ao indivíduo uma posição de passividade em relação ao mundo. Cabe ao indivíduo adquirir as competências que o mercado exige, cabe ao indivíduo estar disponível para o emprego, cabe ao indivíduo obedecer às modas e tendências do mercado. Se esta é uma visão que vai mais de encontro à visão do coaching é, em simultâneo, uma visão que contraria a ideia da necessidade do construtivismo na orientação vocacional, nega a necessidade do indivíduo ser crítico e intervir para a mudança do mundo, nega a dialéctica do conflito indivíduo-mundo, nega a realização do indivíduo nesse nexo sujeito-mundo. Outras contradições se levantam também, nomeadamente a oposição entre individualização e individuação. A formação profissional em correspondência com a meritocracia gera individualização das responsabilidades; ao mesmo tempo, a formação mais direccionada para a aquisição de competências e menos direccionada para a aprendizagem crítica e reflexiva leva a fenómenos de proletarização do sujeito psicológico, dificultando a sua individuação. In A Comuna |
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