Os reis magos chegaram com a droga no cofre
No cofre dos reis magos ia
essa sabedoria, essa simples humanidade. Estimai o que é importante,
tende curiosidade e descobri o que não conheceis, sabei usar o que vos é
dado, respeitai os bens da terra e vivei em paz com os outros.
Baltazar,
Melchior e Gaspar, guiados por uma estrela, traziam ouro, incenso e
mirra. Reis não seriam, mas sacerdotes, conselheiros ou magos (magoi era a tradução grega da expressão bíblica
e as versões portuguesas preferem “sábios do Oriente”, Mateus 2:1 e
2:11), homens sábios em todo o caso, procurando uma boa nova. E dela
ficaram testemunhas e crentes. Por isso, escaparam de Herodes, que os
queria espiões, pois tinham-lhe prometido trazer notícias de Belém mas
depois seguiram por outro caminho para o evitar. Sábios, com certeza.
Uma longa tradição anunciava a sua chegada. No Salmo 72, cantos do exílio babilónico de tribos israelitas, sete ou seis séculos antes do nascimento, é anunciada a homenagem dos reis de três reinos, Sabá, Seba e Társis, e ainda os de umas ilhas, que virão trazer presentes. No Livro de Seth, publicado quatro séculos depois do início na nossa era e atribuído a João Crisóstomo, santo venerado na Igreja Ortodoxa, ainda se conta que doze sábios esperaram uma eternidade, numa montanha da Pérsia, por essa estrela que os guiaria. Essa Pérsia, lugar de riquezas distantes, era também o berço da filosofia de Zoroastro, que tem em comum com o cristianismo e todas as religiões posteriores do Médio Oriente o princípio do Bem e do Mal, a vinda do Messias e o deus único. Curvando-se perante o Bem, estes reis ou sábios reconheceriam o novo mundo que chegava. Tiveram tempo para escolher as suas prendas e sabiam o que traziam (imitando os reis magos, damos pelos tempos fora as nossas prendas de Natal, porventura escolhidas com menos cuidado).
Como todos os sábios, eles desfrutavam dos prazeres que a terra lhes dava. Por isso, eram três as prendas que traziam: ouro, significando a riqueza ou o poder, incenso, a adoração ou a divindade, e mirra, a humanidade. A humanidade? A mirra é uma resina aromática que era usada como analgésico em curativos ou como perfume e até como incenso (mas os reis magos também traziam o incenso tradicional no seu cofre). Não eram no entanto essas propriedades que faziam a fama da mirra, mas antes ser considerada um tónico rejuvenescedor: misturada com vinho, melhorava o seu paladar e multiplicava a sua capacidade estimulante. Esta poção era muito usada pelos romanos, que lhe chamavam Murrhina, e que estimavam que alterasse a disposição de quem a tomasse.
A bebida reaparece na Bíblia por isso mesmo: os soldados que iam crucificar Jesus ofereceram-lhe vinho com mirra, como faziam com outros condenados, para lhes aliviar o sofrimento, e ele recusou (Marcos 15:23). Uma droga, diríamos hoje.
Afinal, uma droga tão usada como o vinho com que se misturava. De um e de outra, do vinho e da mirra, pretendiam os sábios obter o prazer inebriante: usado como moderação ou como vício, este produto, tão mágico que mereceu o cofre dos sábios que buscavam a boa nova e queriam deixar as suas melhores oferendas, era uma cultura.
Desde sempre, as comunidades humanas descobriram que algumas substâncias e produtos transformam o nosso espírito, e procuraram controlar esse efeito: ainda estávamos nos nossos primeiros dias e a fermentação das uvas e de outros frutos ou cereais já era usada para produzir o vinho e as cervejas, em tonalidades e variedades que a imaginação não consegue catalogar. Se então tivéssemos os conceitos de hoje, teríamos chamado a essas bebidas drogas – e são drogas, aliás as mais generalizadas e as que podem produzir efeitos sociais mais generalizados e assim mais nocivos, gerando violência e insegurança. Só que não existe nenhuma sociedade que se possa livrar delas ou viver sem elas. Domesticamo-las, portanto, tanto quanto podemos e sabemos.
No cofre dos reis magos ia essa sabedoria, essa simples humanidade. Estimai o que é importante, tende curiosidade e descobri o que não conheceis, sabei usar o que vos é dado, respeitai os bens da terra e vivei em paz com os outros.
Artigo publicado em blogues.publico.pt a 24 de dezembro de 2014
Uma longa tradição anunciava a sua chegada. No Salmo 72, cantos do exílio babilónico de tribos israelitas, sete ou seis séculos antes do nascimento, é anunciada a homenagem dos reis de três reinos, Sabá, Seba e Társis, e ainda os de umas ilhas, que virão trazer presentes. No Livro de Seth, publicado quatro séculos depois do início na nossa era e atribuído a João Crisóstomo, santo venerado na Igreja Ortodoxa, ainda se conta que doze sábios esperaram uma eternidade, numa montanha da Pérsia, por essa estrela que os guiaria. Essa Pérsia, lugar de riquezas distantes, era também o berço da filosofia de Zoroastro, que tem em comum com o cristianismo e todas as religiões posteriores do Médio Oriente o princípio do Bem e do Mal, a vinda do Messias e o deus único. Curvando-se perante o Bem, estes reis ou sábios reconheceriam o novo mundo que chegava. Tiveram tempo para escolher as suas prendas e sabiam o que traziam (imitando os reis magos, damos pelos tempos fora as nossas prendas de Natal, porventura escolhidas com menos cuidado).
Como todos os sábios, eles desfrutavam dos prazeres que a terra lhes dava. Por isso, eram três as prendas que traziam: ouro, significando a riqueza ou o poder, incenso, a adoração ou a divindade, e mirra, a humanidade. A humanidade? A mirra é uma resina aromática que era usada como analgésico em curativos ou como perfume e até como incenso (mas os reis magos também traziam o incenso tradicional no seu cofre). Não eram no entanto essas propriedades que faziam a fama da mirra, mas antes ser considerada um tónico rejuvenescedor: misturada com vinho, melhorava o seu paladar e multiplicava a sua capacidade estimulante. Esta poção era muito usada pelos romanos, que lhe chamavam Murrhina, e que estimavam que alterasse a disposição de quem a tomasse.
A bebida reaparece na Bíblia por isso mesmo: os soldados que iam crucificar Jesus ofereceram-lhe vinho com mirra, como faziam com outros condenados, para lhes aliviar o sofrimento, e ele recusou (Marcos 15:23). Uma droga, diríamos hoje.
Afinal, uma droga tão usada como o vinho com que se misturava. De um e de outra, do vinho e da mirra, pretendiam os sábios obter o prazer inebriante: usado como moderação ou como vício, este produto, tão mágico que mereceu o cofre dos sábios que buscavam a boa nova e queriam deixar as suas melhores oferendas, era uma cultura.
Desde sempre, as comunidades humanas descobriram que algumas substâncias e produtos transformam o nosso espírito, e procuraram controlar esse efeito: ainda estávamos nos nossos primeiros dias e a fermentação das uvas e de outros frutos ou cereais já era usada para produzir o vinho e as cervejas, em tonalidades e variedades que a imaginação não consegue catalogar. Se então tivéssemos os conceitos de hoje, teríamos chamado a essas bebidas drogas – e são drogas, aliás as mais generalizadas e as que podem produzir efeitos sociais mais generalizados e assim mais nocivos, gerando violência e insegurança. Só que não existe nenhuma sociedade que se possa livrar delas ou viver sem elas. Domesticamo-las, portanto, tanto quanto podemos e sabemos.
No cofre dos reis magos ia essa sabedoria, essa simples humanidade. Estimai o que é importante, tende curiosidade e descobri o que não conheceis, sabei usar o que vos é dado, respeitai os bens da terra e vivei em paz com os outros.
Artigo publicado em blogues.publico.pt a 24 de dezembro de 2014
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