Velhos camaradas, novos uniformes
Comissão
de historiadores é encarregada de investigar a história da “Organização
Gehlen” e a formação do Serviço Secreto da Alemanha Ocidental (BND) [1] (1945-1968)
Por Igor Gak [2]
Os
primeiros anos da República Federal da Alemanha foram marcados por uma
relativa calmaria sobre as discussões a respeito do passado
nacional-socialista do país. O crescimento econômico e a inerente
prosperidade alcançada por grandes parcelas da sociedade favoreciam um
certo silenciamento sobre aquele período. Além disso, homens antes
encarregados de funções chave do Estado alemão durante os anos do
nazismo eram então reabilitados e passavam a ocupar altos postos do
governo democrático da Alemanha Ocidental. Centenas de atos contra
instituições judaicas [3]
no fim dos anos 1950, no entanto, já indicavam que o antissemitismo não
podia continuar sendo ignorado. O silêncio sobre o passado havia
permitido sua sobrevivência no presente, como observara, em 1959, o
filósofo alemão Theodor Adorno. Ao condenar esse fenômeno, Adorno
considerava a “perpetuação do nacional-socialismo na democracia uma ameaça potencialmente maior que a perpetuação de tendências fascistas contra a democracia” [4].
Um debate aberto e profundo sobre o passado político recente da
Alemanha era condição básica e necessária para o fortalecimento das
instituições democráticas alemãs, assim como expurgar essas mesmas
instituições da presença de políticos, juristas, militares e
funcionários públicos outrora comprometidos com os objetivos do Terceiro
Reich.
“Reavaliar
seu passado não é mais, para as sociedades modernas, uma opção”,
observou o historiador Klaus-Dietmar Henke, professor da Universidade de
Dresden. Henke integra, com outros cinco historiadores de diferentes
universidades alemãs, a “Comissão Independente para Investigação da
História da Organização Gehlen e do BND”, criada em abril de 2011 com o
objetivo de investigar a história do Serviço de Informações da República
Federal da Alemanha desde 1946, quando o primeiro serviço de
informações é criado sob encargo das forças de ocupação dos Estados
Unidos, até 1968, quando Reinhard Gehlen, seu criador, deixou a
presidência do BND. Com recursos que ultrapassam a soma de dois milhões
de euros e entrega prevista para 2016, o produto dessa comissão será,
além de uma publicação com os resultados das pesquisas, a criação de um
departamento permanente de história do BND na sua nova e gigantesca
sede, em construção em Berlim, que deverá integrar os cursos de formação
de novos agentes. Neste sentido, o debate sobre a permanência do
passado no presente da sociedade alemã não só continuou, como agora, mas
também, pela primeira vez, um grupo independente de pesquisadores
ganhou amplo acesso aos arquivos do serviço secreto alemão.
No
último dia 2 de dezembro, a comissão apresentou os primeiros resultados
parciais do seu trabalho. Coincidência ou não, a divulgação desses
resultados ocorre num momento em que denúncias sobre ações de espionagem
da norte-americana National Security Agency (NSA) contra
governos aliados dos Estados Unidos tomam conta dos noticiários e agitam
a opinião pública mundial a respeito da forma de agir dos serviços
secretos, entre os quais o da Alemanha. Recentemente, fora revelado que
desde 2007 o BND enviava dados automaticamente para a NSA.. Apesar de o
BND garantir se tratar apenas de dados coletados em regiões como
Afeganistão e norte da África, seu presidente, Gerhard Schindler,
reconhece a necessidade de conferir maior transparência à instituição e
acredita que o trabalho da comissão de historiadores pode ajudar o BND a
reconquistar a confiança da sociedade alemã sobre a sua forma de agir,
as parcerias que contrai e as razões que as motivam.
Sua
“boa intenção” não impede, porém, que Schindler seja cotidianamente
confrontado com “verdades incômodas” a respeito da instituição que
preside, como diz o historiador Christoph Rass, membro da comissão e
professor da Universidade de Osnabrück. Rass teve acesso a mais de 3.500
registros de pessoal e pretende, com base nessa documentação, traçar um
perfil social do BND desde o fim da Segunda Guerra Mundial até o final
dos anos 1960. Assim, já lhe foi possível identificar não apenas que
ex-membros de organizações nacional-socialistas, como a Gestapo, SS, SA
ou SD [5]
figuravam como agentes e mesmo líderes do novo serviço de informações,
mas que a geração mais nova, que integrava a Juventude Hitlerista
durante os anos 1930 e 1940, encontrava no novo serviço de informações,
nos anos 1950 e 1960, os seus antigos Führer (líderes). Essa
perspectiva geracional demonstrou, segundo Rass, que as próprias
estruturas hierárquicas e de companheirismo desenvolvidas no
nacional-socialismo não apenas permaneciam no BND, como foram o
fundamento mesmo da sua política de pessoal. O caráter majoritariamente
secreto da instituição permitiu ao BND, diz Rass, “ignorar de maneira
soberana as sensibilidades suscitadas na opinião pública quanto à
contratação de possíveis criminosos de guerra.”
E
não foram poucos os diretamente reabilitados e recrutados, ou os que
serviram de “fonte” no exterior, em regiões como o Oriente Médio e a
América do Sul. Gerhard Sälter, curador do Memorial do Muro de Berlim e
membro da comissão, observa que no imediato pós-guerra, as redes nas
quais os agentes estabeleciam contatos com suas fontes e recrutavam
novos agentes eram constituídas por ex-membros de organizações do
partido nazista ou da polícia secreta do regime nacional-socialista. Foi
nesse ambiente que Reinhard Gehlen (1902-1979) recrutou seus primeiros
agentes para, sob autoridade das forças de ocupação norte-americanas,
criar, em 1946, o grupo de agentes secretos, batizado com o seu nome.
Ex-comandante do setor de inteligência do Alto Comando do Exército
Alemão (OKH) para o front oriental durante a Segunda Guerra Mundial,
Gehlen organizou um conjunto de informações sobre os soviéticos que
permitiu ao exército alemão preparar ações militares no leste a partir
de 1942 e que, no novo contexto político internacional que surgia com o
fim da guerra, mostravam-se de extremo valor para a Inteligência
norte-americana. Apenas dez anos após a sua criação, em 1956, a
“Organização Gehlen” torna-se BND, submetido à autoridade direta do
Secretário de Estado do governo alemão.
Entre
os contatos do BND no exterior estava Klaus Altmann, nome sob o qual
Klaus Barbie vivia após a guerra na Bolívia. O “carniceiro de Lyon”,
como Barbie ficou conhecido pelos franceses ao ocupar o posto de chefe
da Gestapo nessa cidade francesa, havia sido condenado à morte pela
justiça daquele país e figurava como “assassino” na lista de procurados
da justiça norte-americana. Entre as vítimas de Barbie estão as 44
crianças judias do orfanato de Izieu, deportadas em abril de 1944 para
Auschwitz, bem como um dos principais líderes da Resistência Francesa,
Jean Moulin. As acusações que pesavam contra ele não impediram, porém,
que o serviço secreto norte-americano o auxiliasse na fuga para a
América do Sul, nem que ele se tornasse o contato do serviço secreto
alemão na Bolívia a partir dos anos 1960. A função de Barbie consistia
em passar informações de outros agentes alemães que precisassem
transmiti-las para a central do BND, no sul da Alemanha, próximo a
Munique. As pesquisas de Sälter puderam comprovar que o BND estava
ciente de que o empresário Altmann, membro do Deutscher Club em
La Paz e possuidor de bons contatos na sociedade e governo bolivianos,
era, na verdade, Klaus Barbie, procurado por seus crimes durante a
Segunda Guerra Mundial. Nesse momento, conclui Sälter, parecia ser para o
BND mais importante proteger suas fontes, que contribuir para o debate
na sociedade alemã.
Em
1956, quando o BND era criado de dentro das estruturas da “Organização
Gehlen”, o Secretário de Estado do governo primeiro-ministro da União
Democrática Cristã (CDU), Konrad Adenauer (1949-1963), o jurista Hans
Globke, estava em seu quarto ano de mandato. Na qualidade de conselheiro
de governo, Globke (1898-1973) foi responsável, em setembro de 1935,
por redigir os comentários que justificativam juridicamente a aplicação
da chamada “Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemães”. Mais
conhecidas como “Leis Raciais de Nuremberg”, esse conjunto de leis criou
as condições legais que permitiram a intensificação da exclusão dos
judeus na sociedade alemã. Além disso, em 1939, Globke prestou
consultoria jurídica ao governo “marionete” da Eslováquia sobre a
criação de instrumentos legais contra a população judaica do país e,
durante a guerra, auxiliou na criação dos dispositivos legais que
levaram à deportação de mais de 20 mil judeus gregos para os campos de
concentração e de extermínio da Polônia ocupada. Em seu quarto ano à
frente da Chancelaria Federal Alemã (Bundeskanzleramt) do governo
Adenauer, Globke tinha o Serviço Nacional de Informações sob sua
autoridade direta, além de Gehlen, ex-membro do OKH, ainda ser seu
presidente.
Em
1961, quando Adolf Eichmann era julgado em Jerusalém, a tensão
tornou-se evidente no governo alemão. Eichmann, responsável por
organizar o transporte dos judeus para os campos de concentração durante
a guerra, poderia destacar o papel de Globke na criação de leis que
permitiram o desempenho de suas funções. As razões que o levaram a
calar-se a esse respeito ainda não estão claras. Pesquisas anteriores
indicaram que a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA)
recebeu do BND no fim dos anos 1950 uma lista com o paradeiro de
nazistas que haviam conseguido escapar da justiça, entre eles o de
Eichmann. Desde quando o BND possui esses dados, se auxiliou em sua fuga
e se Eichmann também figurava entre as fontes do BND na América do Sul,
as pesquisas da comissão de historiadores ainda não puderam concluir.
Questões
como a do envolvimento do BND com Eichmann correm o risco de permanecer
sem resposta. Bodo Hechelheimer, coordenador da comissão, reconhece que
muitos documentos foram eliminados no fim dos anos 1990, o que impede
que os historiadores tenham agora possibilidade de uma avaliação
completa sobre determinadas questões. Ainda que com essas lacunas, um
acervo compreendendo um volume de mais de 50.000 documentos em papel,
perfazendo um total de 2,5 km lineares, mais aproximadamente cinco
milhões de fotogramas dispostos em mais ou menos cinco mil microfilmes
está à disposição da comissão. Mesmo se, em 2016, as conclusões finais
da comissão não solucionarem algumas das interrogações que pairam sobre o
passado recente alemão e que não satisfaçam o objetivo de dar mais
transparência ao BND, elas serão, sem dúvida, uma contribuição
importante para o debate acerca da sobrevivência do passado no presente
para qualquer sociedade, como exortava Adorno nos anos 1950.
Há
alguns anos o Brasil vem dando importantes passos no sentido de criar
um debate aberto e profundo sobre seu passado recente, envolvendo amplos
setores da sociedade. Ao aproximar-se a data em que se completam 50
anos do golpe civil-militar que depôs o presidente João Goulart, em
março de 1964, a abertura dos arquivos da ditadura militar,
imprescindível para esse fim, ainda esbarra, porém, em obstáculos
políticos que representam os interesses daqueles que colaboraram com o
regime entre 1964 e 1985 e ainda hoje encontram espaço no cenário
político brasileiro. O exemplo oferecido pelos alemães no trabalho de
revisão de sua história recente dá provas da dificuldade do intento,
provocada muitas vezes pelo incômodo em se encarar uma realidade até
então desconhecida. O resultado, no entanto, só pode ser o
fortalecimento das instituições democráticas brasileira.
[1] Bundesnachrichtendienst (BND): Serviço Federal de Informações.
[2] Doutorando em História na Universidade Livre de Berlim. Colaborador do Café História.
[3]
Segundo levantamento do próprio governo da Alemanha Ocidental, foram
cerca de 700 ações contra sinagogas, escolas e cemitérios judaicos no
oeste da Alemanha em pouco mais de um mês, entre o natal de 1959 e
fevereiro de 1960. Ver: CAMARADE, Hélène: Le passé national-socialiste dans la société ouest-allemande entre 1958 et 1968: Modalités d'un changement de paradigme mémoriel. In: Vingtième Siècle. Revue d'histoire (110). Avril-Juin 2011. p. 86.
[4] ADORNO, Theodor W. Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit. In: Eingriffe: neun kritische Modelle. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1963. p. 126.
[5] Respectivamente: Geheime Staatspolizei (Polícia Secreta do Estado), Schutzstaffel (Esquadrões de Proteção), Sturmabteilung (Tropas de assalto), Sicherheitsdienst (Serviço de Segurança – serviço de inteligência da SS).
In Café História
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