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segunda-feira, agosto 04, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

BIBLIOGRAFIA

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O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

A SITUAÇÃO DIFICIL DE HOJE

Hoje Portugal, perfeitamente inserido no quadro do capitalismo europeu e membro da EU, não tem mais um "movimento anarquista", embora pequeno, como em Espanha e Itália: deve-se falar de grupinhos anarquistas espalhados sem uma coordenação efectiva entre eles.

A situação geral fica mais difícil do que na altura de Salazar, porque o país - cheio de contradições e mal-estares sociais; um dos mais pobres da União Europeia, cujos salários são a metade dos espanhóis - aparece céptico, pouco animado por esperanças de mudanças, arranja-se, vive e está dominado, além do capitalismo, pelas famigeradas três "efe": Fátima, fado e futebol.

Em 1976 foi recriada a Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP), impulsores o grupo de Almada e revista A Ideia, com alvos ambiciosos, mas nos anos 1978 e 1979 por contradições internas deixou de ser activa. Em concorrência com a FARP surgiu a Aliança Libertária e Anarco-sindicalista (ALAS) que actuou muito pela difusão de A Batalha. Dalguma notoriedade gozaram os jovens - um pouco freelancers - que publicaram periódicos pungentes e corrosivos como A Merda e Coice de Mula. Outras publicações tiveram vida breve e destes sobrevive Acção Directa.

Hoje os poucos anarquistas estão na maioria em Lisboa, Porto, Coimbra, Setúbal, Cascais, Alentejo, Leiria. Há bibliotecas, centro culturais e algumas livrarias. Em Lisboa existem o Centro de Estudos Libertários com o colectivo editorial de A Batalha, e a Biblioteca de Operários e Empregados da Sociedade Geral. Continuam a obrar núcleos da FAI, como o Centro de Cultura Libertária de Almada, em Cacilhas (Francisco Quintal foi um dos fundadores, do dito), e o grupo do periódico Acção Directa, ligado à AIT.

O campo de actividade dos grupinhos anarquistas consiste essencialmente na propaganda das ideias libertárias; nas iniciativas culturais, ecologistas e anti-nucleares; no apoio à Amnesty Internacional, na conservação da memória histórica dos protagonistas e das acções de quando o anarquismo ibérico tinha outra consistência e suscitava medo na burguesia.

Algumas tendências "modernistas" do anarquismo português produziram iniciativas reformistas, alheias a uma real perspectiva anti-sistema e de classe, como o Manifesto Libertário de 1987, expressão dum neo-anarquismo que (aos olhos de quem escreve, fazendo parte duma organização comunista anarquista) pela falta de raízes de classe corre o risco de fazer a extremíssima esquerda não autoritária da democracia liberal. Não faltaram as vozes contrárias como a do grupo Vermelho e Preto da FAI.

Nesta situação - onde os anarquistas ficam sem enraizamento entre os trabalhadores organizados e não existe, ainda por cima, um sindicalismo de base, capaz de ser a ribeira daqueles anarquistas que não queiram abandonar as posições tradicionais - aparece muito diluída a militância colectiva, de maneira que o moderno meio anarquista português actua um individualismo não socializado que faz da opção anarquista um facto existencial.

Faltando estruturas colectivas libertariamente organizadas, remedeia-se através de realidades allo stato diffuso. Não há actividade nenhuma dos anarquistas dentro dos sindicatos burocráticos, como pelo contrário, acontece na Itália.

Há também outros factores que contribuem à dispersão dos anarquista, e Lisboa é emblemática neste sentido, com a sua forte urbanização fora dos velhos limites da cidade antiga e o despovoamento de bairros populares do centro histórico.

No passado tudo era mais fácil, existindo bairros operários e populares onde geralmente se trabalhava e vivia. As mudanças do segundo após-guerra incidiram de maneira pesada numa realidade, como a anarquista, já espalhada. Ademais, nos países capitalistas o consumismo dominante penetrou também dentro do imaginário colectivo dos povos - incluindo proletariado e pequena burguesia, que só aparentemente é burguesia, mas na realidade fica semiproletarizada.

Assim, os germes da sociedade do espectáculo, da regressão cultural, da perda de consciência de ser cidadãos e não súbditos, da falta de desejos e esperanças num renovamento radical da sociedade, dominam soberanos.

E embora se manifestem fermentos de rebelião ou um desagrado difuso dos quais não se vem os êxitos, não estamos em nada perto duma revolução social. Isto quer dizer quer os revolucionários deverão trabalhar por muito, muito tempo partindo de abaixo de zero, sem ver a concretização de nada pelo menos os desta geração.

Mas o anarquismo português deve encarar o problema da insuficiência de enraizamento das ideias libertárias na sociedade lusitana começando a fazer frutificar o que há e amiúde se esquece. Refiro-me ao facto de existir um "depósito" potencial feito por individualidades de orientação anarquista ou geralmente libertária que não acham pontos de referência ou agregação e nem se conhecem entre eles, e se limitam à leitura de periódicos e livros anarquistas, ou falam dum anarquismo que não conhecem bem. O problema é saber sair à rua, actuar entre a gente.

O futuro não é cognoscível, mas cedo ou tarde os anarquistas portugueses - herdeiros dum património glorioso - deverão, gostassem ou não, fazer as contas com dois factores (é sempre um comunista anarquista a falar):

  • que não houve uma mudança radical (de qualquer forma fica pior) na situação social e política sob o capitalismo, que motivou o nascimento do anarquismo de classe de Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Fabbri, de Sousa, Makhno, Durruti, etc.

  • que o anarquismo "novo" e não de classe não demonstra fazer melhor do que o "velho" para o fortalecimento dos anarquistas na luta contra o presente estado de coisas, contra a exploração e pela liberdade;

  • que a luta neste sentido continua, com ou sem os anarquistas.

Com os anarquistas … seria melhor.

sábado, agosto 02, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

A QUEDA DO REGIME E A "REVOLUÇÃO DOS CRAVOS"

1. O 25 de Abril

O regime salazarista - atrasado cultural e estruturalmente - jogou, e perdeu, a sua partida decisiva nas colónias de África, porque fez da defesa da presença portuguesa no ultramar um dogma indiscutível. A luta armada dos movimentos de libertação nas colónias - começada na Angola a 16 de Janeiro de 1961 - não venceu militarmente, mas criou uma situação de empate: nenhuma das duas partes em luta podia vencer no campo de batalha.

A 25 de Setembro de 1968 Salazar - em coma por ter caído duma cadeira - foi substituído no cargo de Presidente do Conselho por Marcelo Caetano, professor universitário de Direito, e morreu em 1970.

Em 1974 ficava bem claro que defender as colónias africanas causava só uma dissipação de vidas humanas e de recursos económicos, sem resultados: esforço que Portugal não se podia permitir.

O país, na altura tinha uma população mais ou menos de 9 milhões de habitantes, e uma economia predominantemente agrícola; cerca de 400.000 desempregados; um milhão de emigrados à procura duma vida melhor na Europa e América do Sul; a taxa de mortalidade infantil era muito alta; os analfabetos eram 25% da população; pelo menos 150.000 pessoas viviam em habitações precárias ou sem condições.

A economia nacional estava nas mãos dum pequeno número de omnipotentes grupos financeiros (21) os recursos mais interessantes do império africano eram "terreno de caça" para as multinacionais estrangeiras. Cerca de 40% da população activa trabalhava na agricultura, sector ao qual estava ligado indirectamente 60% da população; os demais, estavam ocupados na função pública e na indústria.

No espaço de dez anos 12% dos portugueses emigraram, e este fenómeno afectava particularmente o proletariado agrícola (22). No Norte, onde havia uma indústria têxtil forte, os 3/5 da mão-de-obra era composta por operários/camponeses. As terras cultivadas produziam, em 30%, para o auto consumo. As aldeias sem luz eléctrica eram uma miríade. O serviço na tropa, por causa da guerra colonial, mobilizava os jovens (subtraindo recursos às famílias) por 4 anos, e as Forças Armadas tinham 200.000 homens.

Entre o final da década de 1960 e o início da seguinte, as intervenções dos capitais estrangeiros em Portugal aumentaram sensivelmente, e com eles a dependência económica do país (23). Em mãos estrangeiras ficavam as infra-estruturas típicas dum país moderno (24), de maneira que Portugal encontrava-se numa situação de colónia europeia que, por sua parte, tinha um sub imperialismo próprio. E as coisas ficavam agravadas pela aliança de ferro entre a burguesia financeira local e o capital das multinacionais: o que fazia com que as empresas portuguesas pequenas e médias não tiverem espaço vital.

Além disso, uma inflação altíssima junta aos salários baixos empobrecia as massas populares ferozmente (há um fado famoso que, alinhado na política "austera" do regime, louvava a "alegria na pobreza"): o rendimento médio per capita por ano não superava os 658 dólares.

O salazarismo não favoreceu em nada a industrialização porque esta traz consigo uma classe operária e a luta social. A indústria, pouco desenvolvida, estava geograficamente concentrada (Lisboa, Porto, Setúbal, Marinha Grande) para favorecer o controlo da polícia, e o influxo de capitais estrangeiros favoreceu ulteriormente a concentração dos centros de produção no litoral, aumentando o despovoamento progressivo do interior e do norte do país.

Esta atitude reaccionária do católico-fascismo de Salazar revelou-se, no final, uma causa grave de fraqueza para o próprio regime, porque acabou por produzir uma inconsistência numérica e política do bloco social que o apoiava e por conduzir alguns sectores da pequena e média burguesia (entre os quais estudantes, intelectuais e membros das próprias Forças Armadas) a perceber a contradição entre os seus interesses reais e os dum regime esclerosado.

A resposta destes descontentes foi o golpe militar do 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime na sua versão "caetanista" (com as suas inconcludentes veleidades pseudo liberais).

Inegavelmente fez sensação no estrangeiro que militares derrubassem um regime de direita, mas - no fundo - a anomalia era menos efectiva do que aparecia.

A conspiração, hegemonizada por jovens capitães, foi inicialmente estimulada por interesses corporativos dos oficiais do Quadro Permanente, prejudicados e ofendidos por uma disposição do Julho de 1973 que - pelas necessidades de fazer frente às exigências da guerra colonial - abria aos oficiais milicianos o acesso ao Quadro Permanente (depois dum curso intensivo breve na Academia Militar), e permitia a revisão das graduações baseadas nos anos de serviço.

Mas uma série doutros factores alimentou e deu motivações à organização do protesto: o cansaço psicológico por uma guerra inútil, da qual não se via o fim; o facto de muitos oficiais não provirem dos sectores da sociedade que tradicionalmente entravam nas Forças Armadas, mas da mais extensa sociedade civil permeável aos ecos dos acontecimentos europeus e mundiais, podendo assim reflectir melhor sobre o significado do que se passava nas colónias e os interesses em jogo; a consciência da incapacidade de renovação do regime para fazer sair o país da sua secular situação de atraso.

Desta mistura explosiva derivou a radicalização dos jovens oficiais que constituíram o Movimento das Forças Armadas (MFA) e - em parte - optaram a favor duma "transição para o socialismo" depois do 25 de Abril.

Como foi dito, o regime foi derrubado por um golpe, e não por uma revolta popular: golpe que - em termos de classe- viu uma aliança momentânea entre pequena burguesia fardada e expressões do capital, mais ou menos "modernizador", que tinham no general Spínola (1° Presidente Provisório da República) uma garantia não revolucionária.

O apoio popular imediato e maciço ("quando a rua se fez rio") favoreceu uma precipitação dos acontecimentos, forneceu um apoio à parte radical do MFA, empurrando numa direcção provavelmente não prevista no início.

Como quer que seja, nem após o 25 de Abril houve em Portugal uma revolução social. Certo é que um texto específico sobre a "revolução dos cravos" deveria ter uma nota debaixo do título: "de como não se faz uma revolução".

As massas populares inegavelmente perceberam a possibilidade de mudanças profundas e, em muitas circunstâncias, deram vida a formas (também de amplitude notável) de acção directa dignas dum espírito libertário, suscitando medo na burguesia.

Mas, de facto, na confusão daquela altura as massas revolucionárias nem se apoderaram do poder nem o derrubaram: o papel embaraçoso de sujeito activo foi sempre e somente das facções das Forças Armadas.

O próprio empurrão para a transição para o socialismo, sustentada pelo V° governo provisório do general Vasco Gonçalves, foi uma iniciativa vinda de cima.

2. A confusão "revolucionaria" e a falta de espaços para os anarquistas

Caída a ditadura, o movimento anarquista reapareceu, mas não ressurgiu: foi outra coisa e teve outra consistência bem diferente. O comício anarquista de 19 de Julho de 1974, na sede da Voz do Operário em Lisboa, para comemorar a revolução espanhola, reuniu um milhar de pessoas e foi uma explosão de entusiasmo; mas a realidade exterior era o que era.

Em 1974 a situação portuguesa não era a de 1936 em Espanha: o Estado e o exército não se desmoronaram e o movimento anarquista não existia depois das destruições salazaristas. A hegemonia no meio do proletariado organizado ou em motim era estalinista e marxista/leninista, e como cogumelos nasciam partidos, partidinhos e pequenos grupos desta última tendência.

Apareceram o Movimento Libertário Português (MLP), e a Aliança Libertária e Anarco-Sindicalista (ALAS), mas os espaços políticos ficavam ocupados por outros, que gozavam dos resultados de tantos anos de propaganda anticomunista e, ao mesmo tempo, a favor dos comunistas. E, para acabar, havia o exército em armas, com uma atitude nas questões de ordem pública que não perdia o tradicional autoritarismo ibérico dos homens fardados.

Após o 25 de Abril os anarquistas conseguiram publicar vários periódicos: A Batalha, Voz Anarquista, A Ideia, Acção Directa, e outros (25); constituíram grupos de afinidade. Eles nada mais puderam fazer naquela situação.

O regresso a Portugal de algum velho (ou novo) anarquista não podia encher os vazios entre gerações produzidos pelo regime fascista. Os mais conhecidos veteranos das antigas batalhas eram: Francisco Quintal, Emídio Santana, Adriano Botelho, Custódio da Costa, José de Brito e Sebastião de Almeida.

Muitos dos velhos militantes ainda vivos - mais ou menos uma centena, e a idade média era entre 60 e 65 anos - estavam vencidos pelo tempo e pelas sevícias nas prisões: e isso tudo antes de puderem transmitir directamente às gerações novas as suas ideias e experiências. Entre os poucos velhos anarquistas e os novos a ligação foi difícil. E os poucos jovens militantes não tinham uma experiência política real.

Ademais, juntava-se à esta combinação de factores exteriores e interiores uma complicação interior: a mistura de divergências velhas e novas. Por exemplo, na região de Lisboa formaram-se dois pólos: um em redor do periódico A Batalha, com Emídio Santana, e outro na Margem Sul, em Almada, que se exprimiu através do periódico Voz Anarquista.

O resultado foi que nestas condições não emergiu um programa coerente de intervenção nos sectores da sociedade portuguesa ainda não hegemonizados pelos partidos.

Para falar verdade, os anarquistas empenharam-se em contrariar esta hegemonia, e participaram nas campanhas de ocupações de casas (e neste campo a experiência existia: a de Emídio Santana, quem nas décadas de 50 e 60 foi parte activa do movimento dos arrendatários de Lisboa), na propaganda antimilitarista, nos quartéis, favorecendo a vaga de indisciplina, nas lutas operárias em nome da autogestão. E uma comissão de trabalhadores de várias empresas chegou a preocupar seriamente o PCP, quando organizou na capital uma grande manifestação contra os despedimentos e a repressão capitalista.

* * *

Na última fase do regime o PCP (diversamente estruturado e autoritário ao máximo grau), chefiado pelo estalinista Álvaro Cunhal, jogou a carta da infiltração no mundo do trabalho, passando pelos sindicatos oficiais do regime. Decisivo, neste sentido, foi 1969, quando uma legislação nova eliminou o controlo do governo sobre as direcções sindicais. O PCP aproveitou-se logo desta mudança e fez participar militantes escolhidos nas eleições sindicais, conquistando muitas direcções.

Após o 25 de Abril o controlo do PCP sobre o mundo do trabalho tornou-se maciço graças a aquele instrumento importantíssimo que foi a Intersindical, organização de coordenação entre os sindicatos criada em Outubro de 1970, durante a assim chamada "primavera política de Caetano" (a Comissão Intersindical constituída na década de 30, foi dissolvida na década de 40).

A nova Intersindical, caído o regime, foi a correia de transmissão do PCP que - com o apoio dos governos provisórios - permitiu eliminar qualquer possibilidade de acção para os anarquistas. Entre Janeiro e Abril de 1975, o governo emanou o D.L. n.215/75 que consagrou o reconhecimento da Intersindical Nacional como "confederação geral dos trabalhadores portugueses" (26). Não havia mais espaços para aquela vinculação dos anarquistas no mundo do trabalho que, até ao salazarismo, teve no sindicato o canal fundamental de recrutamento de militantes.

Como escreveu Emídio Santana:

"Para trás ficavam umas dezenas de anos de sujeição das pessoas a um padrão cultural e político, a uma absoluta dependência do poder constituído e controlado por um sistema policial dominante. Formara-se gerações no estilo desse padrão e o Estado assumiu a principal gestão das relações económicas e condicionantes da vida, como também a missão que outrora fora das misericórdias. (…) O proletariado, na significação do termo, foi ultrapassado pelo súbdito do aparelho económico estatal. Gradualmente o trabalhador foi-se adaptando; passou a confiar na burocracia do Estado, depois na burocracia sindical, desistiu das suas iniciativas e trocou a sua autonomia confiando nos mecanismos contratuais que lhe asseguravam o mínimo vital e o máximo do que deve pagar de impostos e sugestionado a consumir, mesmo desperdiçar, tudo o que a produção capitalista engendra no objectivo exclusivo do lucro. É no domínio da política, no mais baixo significado do termo, que o homem moderno deposita as suas esperanças, porque é nesse domínio que se decide o seu destino, a taxa de inflação que arbitra os seus salários, a garantia de emprego, como há de carregar com a carga de aquisição da casa própria; se tem transportes e a que preço para ir dormir a casa e regressar ao trabalho.

Portanto, supõe que manejando o voto, apoiando o partido., vitoriando os seus líderes pode, embora indirectamente, influir no seu destino. Mas se chegou a confiar de que ainda a melhor hipótese será um socialismo, e que este só é possível pela "ditadura dos proletários", integra-se, obedece, assume todos os paradoxos a crê no próprio absurdo (credo quia absurdum)" (27).

Contudo, algo do velho espírito anarquista, que o fascismo não logrou extirpar no total, ficava ainda no povo, e molestou muito militares e PCP. Todas as agitações e iniciativas populares dos anos 1974 e 1975 testemunham-no. Uma das mais importantes greves depois da "revolução dos cravos" foi organizada pelos trabalhadores da TAP. Na altura, o Secretário de Estado do Trabalho era Carlos Carvalhas, futuro secretário geral do PCP. Ele não perdeu tempo para ordenar aos grevistas o regresso ao trabalho, mas conseguiu só a oposição também dos trabalhadores membros do seu partido (28). A semana de trabalho de 40 horas - fruto da auto-redução dos trabalhadores da TAP - foi logo reconhecida pela lei.

Depois destes acontecimentos, o governo provisório - onde havia ministros do PCP e do PS - apressou-se a emanar uma lei sobre limitações do direito de greve.

Os partidos políticos (PCP in primis) fizeram tudo o que puderam para travar as formas de democracia directa produzidas pelo povo. Como lembrou Luís Garcia e Silva nas páginas de A Batalha (n.195/2003):

"Quem viveu as AGT (Assembleias Gerais dos Trabalhadores) do pós 25 de Abril decerto recorda a perversão operada por forças políticas que, através de discussões estéreis e do prolongamento artificial das assembleias (…) conduziam ao seu progressivo abandono pelos trabalhadores e permitia ao núcleo partidário fazer aprovar as directivas da sua organização. Três dezenas de militantes partidários, às onze da noite, podiam substituir-se aos 4 ou 5 milhares de trabalhadores duma instituição e revogar deliberações de assembleias matinais com centenas de presenças. Foi também assim que Emídio Santana ao opor-se a tais métodos, na qualidade de presidente AG do seu sindicato, foi objecto de uma tentativa de sequestro e ameaças de agressão física, vindo, desgostoso, a desvincular-se daquela organização sindical".

Muitos trabalhadores consideravam os sindicatos existentes uma relíquia do período fascista, por isso manifestou-se logo a exigência da auto-organização, e houve uma proliferação de comissões de trabalhadores, eleitas democraticamente e independentes: em 1974 foram cerca de 200. Estenderam-se também as ocupações de casas e autogestões (380 no Verão de 1975) e a formação de cooperativas (mais ou menos 500), que demonstraram a possibilidade real de reduzir os preços de serviços e bens.

Embora a maioria dos portugueses não tivessem claras ideias políticas revolucionárias, o desenvolvimento das lutas trouxe consigo a consciência da realidade das relações trabalho/capital, e por isso dos interesses em jogo. E amiúde também das relações que os partidos políticos queriam instaurar com os trabalhadores.

Não se ocuparam só casas não alugadas, mas as terras e a coisa interessante foi que a maioria dos camponeses optou a favor do trabalho colectivo.

É natural que os partidos não olhassem bem estas acções autónomas de classe, e o PCP foi na primeira linha multiplicando as chamadas à moderação, à razoabilidade e os obstáculos.

Neste período convulso de acção directa popular no seio dos conflitos de classe, os capitalistas portugueses reagiram numa maneira devastadora para um país que tinha (e tem) o rendimento per capita entre os mais baixos da Europa: despedimentos, como resposta aos pedidos de salário mínimo nacional; reduções dos créditos bancários para as empresas pequenas e médias; especulações para fazer subir os preços; cancelamento de encomendas; boicotes pelo capital internacional; etc.

Depois da falência da intentona do general Spínola em Março de 1975, por causa do perigo de degeneração da ordem pública o governo, apoiado pelo PCP, lançou uma política de reforma agrária e nacionalizações. O esquema era típico do terceiro mundo - o exército como promotor/instrumento do capitalismo de Estado - e "vendeu" as nacionalizações como passagem ao socialismo. Assim perdeu-se outra ocasião grande e embarcou-se num caminho destinado a durar pouco.

Fugido Spínola, o sector mais radical do MFA - oficiais de esquerda e movimento de sargentos e militares contra o fascismo - apoderaram-se da situação no interior das Forças Armadas, efectuando uma depuração ampla mas não completa. Contudo não ligaram estreitamente as estruturas revolucionárias que existiam nos quartéis com as estruturas populares de luta da sociedade civil (comités de fábrica, de bairro, de prédio, camponeses, etc.) no sentido de criar um bloco social sujeito activo dum projecto de socialismo autogestionário. Nem consideraram que - pelo boicote do capitalismo ocidental e a indiferença do bloco comunista era necessário - por razões económicas - realizar formas de cooperação estreita com os movimentos de libertação nas ricas colónias. Preferiu-se lançar de maneira autocrática nacionalizações não harmonizadas dentro dum projecto global e não apoiadas por estruturas e recursos indispensáveis para administrar uma economia nacionalizada: numa palavra, os militares esquerdistas não dispunham das bases económicas para subtrair Portugal às chantagens dos países fornecedores de capitais e matérias-primas.

Em termos políticos, as oposições foram reforçadas por: uma direcção das reformas pelo vértice; a falta de coordenação com um bloco social de apoio; a presença de sectores de direita, não depurados, nas Forças Armadas; a falta de ligações reais com a sociedade civil.

Assim que as eleições de 25 de Abril de 1975, para a Assembleia Constituinte, deram a vitória ao Partido Socialista de Mário Soares (29), houve a demonstração de se ter formado um bloco social burguês fortalecido pelo descontentamento operário também nos sítios mais "vermelhos" do país.

E no interior do MFA as relações de força mudaram com prejuízo para o sector radical de Vasco Gonçalves, reemergindo a natureza de classe pequeno burguesa da maioria dos oficiais. Natureza que, na altura de Caetano ficava escondida, sem desaparecer substancialmente.

Em síntese: não é que faltou à revolução o partido leninista como organizador ou guia; ou uma coordenação revolucionária para orientar as iniciativas populares em direcção ao objectivo de derrubar o sistema estatal e capitalista. O que se deve sublinhar é que faltaram as próprias condições que permitem falar - com um mínimo de seriedade - de poder popular.

Em Portugal não houve o colapso do Estado e das suas instituições civis e militares, nem um movimento de massa forte e (pela acção de gerações de revolucionários) com a consciência do que se devia fazer, como na Espanha de 1936.

As instâncias a favor do poder popular existiam, mas chocavam contra esses factores negativos, e não tinham um durável apoio de massas, além de tantos e gratuitos slogans que à burguesia aterrorizada pareciam truculentos e preanuncio de sabe-se lá o quê.

Deve ser claro que na maioria das organizações autónomas (comités, colectivos, etc.) não se queria derrubar o poder (a possibilidade real é outra coisa): em linha geral actuavam em direcção ao Estado, ao MFA e aos partidos políticos como grupos de pressão e vigilância, sem manifestarem veleidades nenhumas de os suplantar.

Após a longa noite salazarista não admira se o movimento a favor do poder popular tivesse uma base confusa e heterogénea (operários, pobres, estudantes, intelectuais de esquerda, pequenos comerciantes com problemas económicos, etc.), mais confusa e desorientada pela proliferação de grupos e grupinhos que se disputavam a hegemonia do movimento para a jogar no campo da política e não da revolução.

Assim, no final esse movimento confiou no brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho (organizador militar do golpe do 25 de Abril) - confiança imerecida - o qual revelou-se, na hora de la verdad, incerto, inepto e fiel às hierarquias militares.

Em teoria, considerada a situação geral, só era possível a conquista do Estado, que no momento de tensão maior entrou numa espécie de paralisia. A história das revoluções ensina duas coisas: que o momento favorável - quando existir - passa rápido e é preciso cogliere l'attimo [apanhar o instante], como se diz na Itália; que (é praticamente uma "lei") quando um Estado entra numa situação de paralisia, sem se desmoronar por completo; isso dura pouco tempo, pois logo que se manifestem condições mais favoráveis, o Estado retoma força e vigor. O que em Portugal aconteceu e se manifestou a 25 de Novembro de 1975.

A esquerda extrema não tinha chances. O PCP, que se auto proclamou "partido revolucionário do proletariado" era um caso particular. Em concreto não fez absolutamente nada para uma revolução proletária que a URSS não queria. Contudo - e aqui jogou, mas não sozinha, a imagem dos comunistas fruto da propaganda salazarista - este partido fazia medo, porque era autoritário, sectário, demasiado ligado a Moscovo (e a opinião pública não sabia que a URSS estava contrária à revolução em Portugal) e desenvolvia claramente manobras oportunistas para conquistar a hegemonia também nas instituições do Estado, nos sectores radicais do MFA.

O PCP apostou tudo numa solução de controlo pelo vértice da luta pelo poder, por meio duma maciça e potente infiltração no aparelho estatal, nos media, nos sindicatos, e por causa disso combateu cada forma de autonomia popular. Muito inclinado à conspiração, o PCP em vez de desenvolver um programa político claro que envolvesse ao redor dele um bloco social com hegemonia operária, cimentado pelo consenso e entusiasmo das massas, procurou apresentar-se como força civil de apoio ao governo do MFA, recorrendo aos jogos de cúpulas: o único resultado foi a progressiva alienação da extrema esquerda e das massas que (iludidas pelo próprio PCP) queriam uma revolução verdadeira. E também coligou contra si a maioria das Forças Armadas (nas quais o Partido Comunista acabou por acentuar as contradições de classe) os socialistas e outros partidos.

A acção arrogante do PCP foi um estímulo para no Norte do país começar uma Vendeia lusitana católica e fascista e os Estados Unidos com outros países europeus aumentarem as ajudas aos anticomunistas de Portugal (desde os socialistas até ao clero reaccionário).

A 25 de Novembro de 1975 todas estas forças (às quais se juntaram sectores da extrema esquerda), aproveitando a ingenuidade e as veleidades dalguns sectores esquerdistas do MFA, apresentaram a conta a estes e ao PCP. O novo golpe militar (coniventes o Presidente da República general Costa Gomes, o PS de Mário Soares, a direita fascista, o clero católico, a embaixada USA) destruiu a parte radical das Forças Armadas, deu início ao processo de abandono definitivo do período "revolucionário" e das conquistas dos trabalhadores e pode ser considerado o regresso à natureza verdadeira do golpe do 25 de Abril, que não foi o espírito com que as massas populares viveram aquela data.

Por seriedade, Portugal de hoje deveria festejar esta data como seu dies natalis.

O PCP no último instante fez uma viravolta, abandonou ao seu destino os militares "revolucionários" e os aliados deles, e conseguiu sobreviver legalmente e politicamente, bordejando eleitoralmente à volta dum 10% dos votos.

Cada ilusão acabou assim (30).

(21) Oito grupos controlavam o 80% da economia portuguesa: a) a família Melo, proprietária da Companhia União Fabril (trust que controlava 250 empresas em vários sectores económicos), do Banco Totta & Açores; b) a família Champalimaud, proprietária do Banco Pinto e Sottomayor, e da parta maior das companhias de seguros, monopolista do cimento, com interesses em África e Brasil; c) a família Espírito Santo, que controlava cerca de 200 sociedades, proprietária do Banco homónimo e do Banco Comercial de Lisboa; d) a família Cupertino de Miranda, proprietária do Banco Português do Atlântico; e) o grupo Borges e Irmão, que controlava toda a indústria turística e era proprietário de três jornais; f) M. Jorge de Brito, Proprietário do Banco Intercontinental; g) a União Comercial Sacor, controlada pelas famílias Melo e Cupertino de Miranda, monopolista da refinação e distribuição do petróleo; h) o Banco Nacional Ultramarino, controlado por quase todos os grupos já referidos. M. BELMEIRA MARTINS, Sociedade e Grupos em Portugal, Lisboa 1973.
(22) Como nas zonas de Beja, Setúbal, Santarém, Porto Alegre, Évora.
(23) Em 1971 o capital médio das empresas com capital estrangeiro era 10 vezes superior ao capital das empresas portuguesas. A utilidade de investir em Portugal derivava duma norma de 1965 que permitia a transferência livre de juros, lucros, etc. em favor do capital importado e também o direito de os levantar livremente.
(24) Tratava-se de: telefones, telégrafo, comunicações internacionais, transportes públicos de Lisboa, parte dos transportes ferroviários, e aéreos, frota petrolífera, uma parte grande da energia eléctrica. Além disso os capitalistas estrangeiros possuíam boa parte dos capitais investidos na siderurgia, nas indústrias do cimento, da cerâmica, sacarifica, bancos, refinarias de petróleo com as redes de transformação e distribuição, exclusiva na fabricação de locomotivas, estabelecimento navais, etc.
(25) Em 1975: O Pasquim (Cascais), O Estripador (Amadora), Não!, A Merda, O Planador, O Peido, O Recto Merdário, O Rebelde, O Libertário, Escaramuça, Cadernos Quotidianos da Miséria (Lisboa); em 1976: Satanás (Almada), Apoio Mútuo (Évora); em 977: A Semente (Braga), Agitação (Coimbra), O Chato (Porto), Sabotagem e Subversão Internacional (Lisboa); em 1978 e 1979: Revolta (Leiria), O Meridional (Faro), Recortes do Arco-da-velha (Leiria), Informações & Contactos (Lisboa); em 1985: Fenda (Coimbra), A Urtiga (Lagos), Antítese (Almada); em 1986: A Revolta (Lisboa).
(26) Da Intersindical vai nascer a CGTP (até hoje debaixo do controlo do PCP); em 1978 os socialistas constituíram a UGT.
(27) E. SANTANA, cit., pp. 317-19.
(28) As coisas não se resolveram logo: tropas foram enviadas a ocupar o aeroporto de Lisboa; os membros do Comité de greve foram presos e 200 trabalhadores despedidos, mas cedo reintegrados depois de manifestações e ameaças doutras greves.
(29) O Partido Socialista, independentemente do seu radicalismo verbal, utilizado para ultrapassar o PCP nas preferências dos trabalhadores (de facto o sector realmente radical do partido foi logo progressivamente privado de importância e de rol) teve uma função importante no processo que conduziu Portugal à "normalidade" burguesa, sem evitar alianças não sempre ocultas com a direita.
(30) A bibliografia sobre o assunto é imensa. Damos aqui os títulos mais importantes ou úteis: D. ALMEIDA, Ascensão, apogeu e queda do MFA, Lisboa 1976; A. BARROS, A reforma agrária em Portugal - Das ocupações de terra à formação das novas unidades de produção, Oeiras 1981; J.M. CARVALHO FERREIRA, Portugal no contexto da "Transição para o Socialismo" (História de um equívoco), Lisboa 1997; O.S. de CARVALHO, Alvorada em Abril, Lisboa 1977; J.S. CERVELLÓ, A revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola (1961-1976), Lisboa 1993; E.S. FERREIRA, Conflitos e mudanças em Portugal, 1974-1984, Lisboa 1986; F. MARTINS RODRIGUES, O futuro era agora: o movimento popular do 25 de Abril, Lisboa 1994 e Abril traído, Lisboa 1999; M. MESQUITA-J. REBELO, O 25 de Abril nos media internacionais, Porto 1994; K. MAXWELL, A construção da democracia em Portugal, Lisboa 1999; J.C. PEREIRA BASTOS, Cooperativas depois de Abril. Uma força dos trabalhadores, Coimbra 1977; A. RODRIGUES-C. BORGA-M. CARDOSO, O movimento dos capitães e o 25 de Abril, Lisboa 1974; P. SCHMITTER, Portugal: do Autoritarismo à democracia, Lisboa 1999; J. Varela Gomes, Esta democracia filofascista, Lisboa 1999.

(Continua)

sexta-feira, agosto 01, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

GUERRA DE ESPANHA E PÓS-2ª GUERRA: A PARALISIA

Iniciada a revolução espanhola a 19 de Julho de 1936 vários exilados anarquistas com entusiasmo imutável e, como sempre, sem pedir nada foram a Espanha combater contra os franquistas junto aos camaradas da FAI. Alguns nomes: Germinal de Sousa (filho de Manuel Joaquim, foi delegado político da coluna Tierra y Libertad), Aníbal Dantas, José Marques da Costa, José Agostinho das Neves, Firmo Matos, Francisco Taveira, Jaime Brasil, José Gonçalves Lima, José Rodrigues Reboredo, Manuel Boto, Manuel Firmo, Manuel Francisco Rodrigues, Manuel José Lourenço, Raul Pereira dos Santos, etc. E com os camaradas espanhóis ficaram entalados numa "tenaz" constituída pelos fascistas e pelos estalinistas do PCE/PSUC.

Também no seio do anarquismo português a entrada de representantes da CNT/FAI no governo republicano - na sequência da revolta dos militares Franco e Mola, iniciando-se uma guerra civil - provocou polémicas, debates e oposições (lembremos as críticas de Adriano Botelho e Vivaldo Fagundes), mas todos cumpriram com o seu dever revolucionário.

Durante a guerra espanhola prosseguiram as tentativas de lutar contra o regime de Salazar e de o derrubar pelas armas. Nos dias 20 e 21 de Janeiro de 1937 elementos libertários foram autores de atentados bombistas contra a Casa de Espanha e duas emissoras radiofónicas que difundiam propaganda fascista - Rádio Clube Português e a Emissora Nacional. E no mesmo ano três navios da Armada (Dão, Afonso de Albuquerque e Bartolomeu Dias) amotinaram-se nas águas do Tejo contra o regime e a sua política de ajuda militar a Franco. Mas também esta revolta não teve sorte: os navios dos rebeldes foram alvejados por canhões e as tripulações forçadas a se render, aumentando assim o número dos encarcerados e deportados.

A 14 de Julho de 1937 o conhecido anarquista Emídio Santana, com outros companheiros, organizou um atentado bombista contra o próprio Salazar, que infelizmente não teve êxito (18). E nos anos 1937 e 1938 houve a última vaga de detenções de militantes anarquistas.

O trágico desfecho da guerra de Espanha afectou naturalmente os combatentes e exilados portugueses, unidos num só destino com os camaradas espanhóis, uma vez impedido regresso a Portugal: a fuga rumo à França - para os que conseguiram fugir - trouxe o inferno dos campos de concentração, reservados pelo governo burguês de França a milhares de civis e combatentes da guerra civil.

Alguns anarquistas portugueses puderam escapar para América Latina (19), alcançando os camaradas que já aí estavam. A FAPE não sobreviveu à derrota da revolução espanhola.

Os anarquistas em Portugal - sem possibilidade de obterem ajudas, nem refúgio noutro país da península ibérica; internacionalmente abandonados e sem recursos; oprimidos por um regime policial que sem hesitações encarcerava, torturava e matava; sem debates interiores impossibilitados pela clandestinidade - foram vivendo dificilmente durante cerca de trinta anos.

No início da Segunda Guerra Mundial a repressão salazarista - que nunca se reduziu, ao ponto do movimento sindical clandestino desaparecer totalmente - tornou-se mais pesada, e chegou ao seu cume nos anos 1939 e 1940, aproveitando uma conjuntura favorável para os fascismos europeus.

Mas as consequências económicas da guerra manifestaram-se cedo, apesar da neutralidade portuguesa. Algumas pessoas (e empresas), como de costume, enriqueceram-se, mas houve também falências de empresas pequenas e médias e, alguns sectores da pequena burguesia acabaram por ser proletarizados. Tudo isso deu fermento ao regresso das agitações sociais e em 1942 a greve apareceu outra vez na cena política portuguesa.

E manifestaram-se também os anarquistas. As Juventudes Libertárias procuraram a reorganização do movimento anarquista, tendo três objectivos: fortalecer a própria organização, reconstituir a CGT e reorganizar a FARP. Este último propósito foi logo abandonado pelas evidentes dificuldades.

A CGT reapareceu em 1945 mas, sem as estruturas que tinha antes da ditadura e faltando as novas e mais idóneas à altura - não conseguiu sobreviver além de 1950, quando desapareceu definitivamente.

Sabe-se que o regime salazarista, como o franquista em Espanha, não foi arrastado pela derrota de Hitler e Mussolini. Salazar teve tempo bastante para compreender o novo rumo da história e ligou estreitamente Portugal aos interesses do capitalismo ocidental vencedor e do imperialismo anglo/americano: apropriados acordos monetários puseram a economia portuguesa debaixo do controlo do capital estrangeiro mais estreitamente do que antes; durante a guerra, Salazar cedeu bases militares nos Açores, como sinal duma neutralidade colaboradora que lhe trouxe reconhecimentos duradouros até à admissão à ONU e à NATO.

Naturalmente a natureza fascista do regime não mudou: houve um mínimo de cosmética formal e pseudo liberal - que podia encantar só os que já tinham decidido de se deixar encantar, ou seja os Aliados, que precisavam de Portugal para um papel anti-revolucionário e anti-URSS, assim como precisavam de Espanha, apesar de Franco.

De qualquer modo, em Portugal, os poucos libertários devolvidos à liberdade ou em estado de liberdade vigiada (20) utilizaram todos as falhas (bem que mínimas) da espessa malha repressiva do regime. De vez em quando saía algum número de A Batalha, e havia sinais de existência dos anarquistas. Com o esgotamento das referidas tentativas das Juventudes Libertárias, houve uma dispersão dos militantes anarquistas sobreviventes, mas nem todos abandonaram a luta: alguns colaboraram com o Movimento de Unidade Democrática (MUD); outros actuaram em cooperativas e associações, nem faltaram os que procuraram participar nas tentativas de organizar uma luta armada contra o salazarismo como, por exemplo a Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR), fundada em 1967 por Emídio Guerreiro (mação, e combatente na guerra de Espanha com a República) e José Augusto Seabra, composta por elementos de esquerda e libertários: assinados pela LUAR foram os assaltos ao Banco de Portugal na Figueira da Foz e à sede da 3ª Região Militar em Évora.

Os anarquistas não tinham possibilidade de fazerem mais, pela falta de aparelhos, ajudas, ligações internacionais, que - pelo contrário- tinha o PCP. Esperemos que um dia os historiadores dediquem um estudo cuidadoso para aclara bem o papel desenvolvido pelo PCP nos anos da ditadura. A função dos comunistas estalinistas foi sobrevalorizada pela propaganda quer salazarista quer do próprio PCP, sem por isso tirar nada a tantos militantes comunistas (contudo não só eles) encarcerados e torturados pelo regime.

A derrota espanhola e a nova ordem internacional nascida da Segunda Guerra Mundial causaram problemas grandes de acção e de posição ao movimento anarquista de todos os países ocidentais. Em resumo: um dos pilares do anarquismo internacional até à década de 30 do século passado consistiu na preparação da revolução social com a confiante expectativa dela acontecer. Mas, desde o início do século até ao fim do segundo conflito mundial, três acontecimentos incidiram pesadamente e fizeram com que:

  • a expectativa revolucionária desapareceu para os anarquistas;
  • só os comunistas anarquistas trabalharam nesta direcção apesar de actuarem em condições péssimas, ignorados e amiúde combatidos por outros sectores anarquistas, para os quais a revolução social é uma gloriosa lembrança do passado, um acontecimento irreal hoje e amanhã (e talvez pouco desejável).

Os três acontecimentos causa deste estado de coisas foram:

  1. a revolução russa, morta pelas armas dos bolchevistas e pelo sucessivo e feroz totalitarismo;
  2. a revolução espanhola - a única na Europa ocidental após a Comuna de Paris - arrastada pela acção convergente de fascistas e estalinistas, com a diferença que em Espanha os anarquistas começaram a criar uma sociedade nova, comunista libertária;
  3. a situação internacional de confronto entre dois blocos políticos e militares depois do 1945.

Em Portugal quando já estava claro o rumo trágico da revolução russa, e delineava-se o conflito com os bolchevistas, alguns anarquistas manifestaram e exigência de voltar a meditar sobre o papel e a importância da educação colectiva para a revolução social, evitando que duma revolução prematura derivarem velhos ou novos tipos de Estado - proletário ou burguês sempre Estado é. E foi posto o problema da efectiva possibilidade de realizar o comunismo libertário logo depois da revolução. Após o entusiasmo inicial produzido pela revolução espanhola, o curso dos acontecimentos fez reabrir o problema.

A experiência da luta sangrenta e traidora desenvolvida pelos estalinistas espanhóis contra os anarquistas influiu no meio libertário de maneira que vários sectores se distanciaram quer da revolução quer daquele projecto comunista libertário que desde Bakunin foi a alma do anarquismo histórico e foi vivido por muitos que participaram na revolução espanhola e depois o abandonaram.

Um exemplo sintomático disso, e de relevo, no anarquismo português foi o caso de Germinal de Sousa, personagem saliente da FAI. Na nova situação internacional, razoavelmente preocupado pela férrea hegemonia dos partidos comunistas nos movimentos operários de Itália, França, Espanha e Portugal, e pela capacidade de infiltração deles, de Sousa deslocou-se a favor de um anarquismo não mais de classe, porém centralizado na defesa simples da liberdade e favorável ao bloco ocidental.

Na história do anarquismo contemporâneo o "divisor de águas" decisivo foi a derrota anarquista em Espanha, que fez explodir no seio do movimento internacional uma crise estratégica (e, ainda por cima, de identidade) que - somada à perda de referências no proletariado urbano e camponês - levou à paralisia política e social, não contrabalançada pelos esforços dos sectores anarquistas que ficaram sempre empenhados na luta de classes.

Os anarquistas portugueses (agora mais ou menos 300 veteranos, isolados e agora sem raízes sociais: a sombra do que foi um movimento de massas) deviam decidir sobre dilemas difíceis, sendo o ditador Salazar parte do bloco ocidental: manter a mais completa autonomia ou fazer parte duma coligação antifascista? Ficar fieis ao anarco-sindicalismo, ou escolher uma dimensão libertária mais ampla e soft? Lutar por uma revolução social não mais segura e iminente ou ser a parte libertária dentro dum evolucionismo radical/democrático? Propugnar a luta de classes ou defender só as liberdades ameaçadas por Moscovo, Pequim e os partidos comunistas?

Problemas que não obtiveram do movimento anarquista internacional a resposta idónea para voltar a ter um papel activo e de relevo nas lutas do proletariado, que nunca pararam, mas foram dirigidas por outros.

A situação dos anarquistas portugueses foi a pior e não melhorou. Ainda por cima, quando também na juventude portuguesa se manifestaram agitações e desejos de renovação, o seu alheamento em relação ao anarquismo revelou-se na sua profundidade: os pontos de referência foram sempre dentro do comunismo marxista, nas suas variantes: ortodoxa moscovita, maoista, trozkista, guevarista e depois católica-comunista.

O regime de Salazar não se limitou a destruir o movimento anarquista em Portugal, mas fez-lhe também um serviço péssimo para o futuro, contando com a falta de memória histórica das gerações sucessivas. Assim (como aconteceu em Itália e Espanha) a ditadura escolheu como seu arqui-inimigo não o anarquismo (revolucionário, não disponível para as práticas oportunistas), porém o comunismo estalinista, menos arraigado no país. E contra este alvo dirigiu a acção maciça da sua propaganda a pesar de não ser o PCP uma ameaça verdadeira.

Tudo isso contribuiu ao fortalecimento da penetração comunista no meio proletário português, que acabou por ser convencido de que o inimigo verdadeiro do regime era o PCP!

Vale a pena sublinhar que na queda do regime o papel do PCP foi mínimo, e aquando o 25 de Abril de 1974 os militares golpistas se moveram independentemente do PCP, o povo saiu à rua prescindindo do PCP, animado por esperanças revolucionárias filhas daqueles ideais difundidos pelos anarquistas e anarco-sindicalistas doutras gerações.

(18) E. SANTANA, História dum atentado - O atentado a Salazar, Mem Martins 1976.
(19) Ficaram na Argentina José de Brito e Vivaldo Fagundes; em Brasil Neno Vasco, António Costa Carvalho, Tércio Miranda, Jorge Campelo, Pinto Quartim, Roberto das Neves, Pedro Ferreira da Silva, Inocêncio Câmara Pires, Fernando Neves, Miguel Lopes, António Corrêa Ramiro da Nóbrega, Diamantino Augusto, Luciano Trigo.
(20) Como José Augusto de Castro, Augusto Godinho, João Vieira Alves, Francisco Quintal, Manuel Joaquim de Sousa, Aníbal Dantas, Raul Zacarias, José Rodrigues Reboredo, António Libório, Rodrigo Ferreira, José de Almeida, Adriano Botelho, José Soares Lopes, Júlio Gonçalves Pereira, Almeida Costa, Fernando Barros.

(Continua)

quarta-feira, julho 30, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

DITADURA E RESISTÊNCIA

Quando a 28 de Maio de 1926 um golpe militar chefiado pelo general Manuel de Oliveira Gomes da Costa derrubou a República liberal/democrática, não houve ninguém para a defender.

Santos Arranha, director de A Batalha, participou como representante da CGT numa reunião de militares e civis no quartel do Carmo, da GNR de Lisboa, para tentar a organização dum bloco de forças que contrariassem as tropas de Gomes da Costa em marcha de Braga, rumo a Lisboa. Mas a tentativa faleceu pela insipiência dos políticos burgueses.

Não faltaram tentativas sucessivas de resistência. No Porto teve lugar uma reunião organizativa com a participação de delegados da CGT (Clemente Vieira dos Santos), da UAP (Abílio Ribeiro), da Federação das Juventudes Socialistas, da Câmara Sindical do Porto, do Comité de Propaganda Anarquista do Norte (Fernando Barros), dos jornais A Batalha, A Comuna, Grito da Juventude, Jornal de Notícias.

A 3 de Fevereiro de 1927 houve no Porto uma revolta contra o regime chefiada pelo general Sousa Dias, com forte participação popular e libertária, mas foi derrotada militarmente em pouco tempo, com muitas dezenas de mortos e centenas de detenções e deportações. Em Maio A Batalha foi fechada pelas autoridades.

Naquela altura da história da resistência antifascista portuguesa a CGT assumiu uma posição que queria conciliar exigências práticas e razões ideológicas. Por isso, a confederação foi activa participando nas tentativas insurreccionais, mas não se uniu nunca às batalhas em favor da restauração da ordem constitucional da I República; e considerou a sua associação às revoltas de "natureza técnica", sem implicações na direcção dum movimento que unisse todos os grupos e partidos antifascista.

Na realidade cada um pensava nos seus interesses: os bolchevistas do PCP actuaram muito, muito pior fazendo nascer as suas fortunas das desgraças alheias que mesmo eles causaram, mantendo naquela fase delicada da luta uma atitude ambígua, para não dizer outra coisa. Assim, no 1° de Maio de 1928, os comunistas dirigidos por Bento Gonçalves, fizeram todo o possível para a falência da festa dos trabalhadores, organizada pelos anarco-sindicalistas.

Em 1929 a UAP foi declarada fora-da-lei e os anarquistas - mudadas as condições exteriores - experimentaram outra estrutura, territorial e não mais baseada nos grupos de afinidade: na região do Porto manteve-se a preferência para os grupos de afinidade.

Em Abril de 1928 António de Oliveira Salazar - um clerical reaccionário, professor de Economia Política e Ciência das Finanças na Universidade de Coimbra - recebera o cargo de Ministro das Finanças no governo da ditadura militar, conseguindo logo o controlo total do aparelho governativo e em 1932 foi nomeado Presidente do Conselho.

Em condições progressivamente mais difíceis, até à clandestinidade, devido ao reforço do regime militar e à criação sucessiva do Estado Novo fascista que Salazar quis em 1933, prosseguiu - nos limites do possível- a luta dos militantes anarquistas e libertários. Ainda em 1929, foram editados dois novos periódicos de propaganda.

Também o PCP (estruturado diferentemente) organizava-se melhor, em especial no nível sindical. Os comunistas criaram uma Comissão Intersindical, mentor Daniel Neto Botelho, que teve uma vida muito breve. A CGT, para contrariar a actividade bolchevista criou uma Comissão Interfederal, e esforçou-se para poder publicar A Batalha, pelo menos semanalmente, mas - por causa das incessantes intervenções censórias - o periódico passou a ser publicado clandestinamente, quando possível.

A resistência armada contra o regime continuou, mas a revoltas de populares e militares falharam todas (14).

Os anarquistas não desistiam. Na fortaleza de São João Baptista os prisioneiros libertários criaram um jornal escrito à mão, e no Porto (cidade onde a intensidade da repressão foi um pouco mais leve do que em Lisboa) intentou-se reconstituir uma imprensa libertária (O Germinal, A Vida, A Aurora). E no verão de 1932 foi criado o Comité Regional Organizador das Juventudes Libertárias. A organização das Juventudes Libertárias actuou até a década de 50 e desenvolveu - apesar das dificuldades que é fácil imaginar - uma acção propagandista muito intensa, e mais o menos regular. Continuou a publicar-se A Batalha e a difundir panfletos com a sigla da CGT para manter viva a imagem da confederação.

No final de 1931 foi organizada a Aliança Libertária de Lisboa - por impulso de Emídio Santana, Manuel Joaquim e Germinal de Sousa, militantes da Graça, de Campo de Ourique, Alcântara, Belém, Santo Amaro - que no mesmo ano enviou um delegado ao Congresso da FAI em Madrid. No Barreiro formou-se o grupo Terra e Liberdade (que publicou o jornal homónimo); no Porto a Federação Anarquista do Norte; no sul a Aliança Alentejana e em Setúbal a Aliança Libertária Portuguesa.

Todas estas organizações foram alvos duma repressão intensa e centenas e centenas de militantes foram deportados.

Sempre em 1931 foi publicada a segunda edição do livro O Sindicalismo em Portugal, de Manuel Joaquim de Sousa; e António Botelho escreveu A Conquista do Poder, cuja edição foi cuidada por Álvaro Costa e Emídio Santana.

Em 1932 uma greve geral coordenada pela CGT contra a baixa dos salários - decidida por Salazar no quadro da sua política de saneamento das finanças e da economia - faliu pela sabotagem do PCP, que não tinha interesse nenhum num sucesso dos anarco-sindicalistas.

O ano 1933 foi fundamental na história do regime de Salazar, porque viu a criação do Estado Novo e as reformas legislativas inerentes: nova Constituição; reforma das Forças Armadas e da justiça; partido único (a União Nacional); nova lei de imprensa; Estatuto do Trabalho Nacional (imitação da Carta del Lavoro de Mussolini), com o objectivo de dissolver os sindicatos livres, transferir as suas propriedades ao Estado e depois aos "sindicatos nacionais", estruturados conforme um esquema corporativo; criação do Instituto Nacional do Trabalho; organização corporativa da sociedade e negação conceptual do conflito de classes; obrigação para os sindicatos de se enquadrar na nova ordem corporativa, evitando assim a dissolução; proibição da greve; interdição de aderir às federações sindicais internacionais.

Este corpus normativo fez com que a CGT - independentemente da sua situação de ilegalidade perdesse as possibilidades reais de obrar como confederação sindical (embora clandestina).

Adequou-se primeiro o sindicato dos vidreiros da Marinha Grande, controlado pelo PCP por meio de José Sousa - Armando Correia Magalhães. A CGT esforçou-se por contrariar a legislação salazarista (o Estatuto do Trabalho Nacional entrou em vigor a 1° de Janeiro de 1934) e organizou um Comité de Acção (15) que preparasse uma greve insurreccional. Esta foi programada para o 15 de Janeiro de 1934, e também os sindicatos controlados pelo PCP aceitaram a data.

Desde o início as coisas não marcharam na direcção justa: antes foi preso José Francisco, e a 12 de Janeiro foi a vez de Mário Castelhano, que possuía o esquema operativo da revolta - denunciado à polícia (e o denunciante sabia bem o conteúdo dos documentos detidos por Castelhano!). Isto acabou por dar um golpe decisivo à CGT: beneficiária única foi a comunista Comissão Intersindical, que naquela altura podia contar só com 6 sindicatos, e somente em Lisboa.

Preso Castelhano, a CGT pediu um afastamento da greve insurreccional por poder aclarar a situação, mas … a Comissão Intersindical opôs-se em nome das exigências superiores das massas! E quando tudo estava disposto para começar a insurreição, a "fatalidade" quis que a Ernesto Ribeiro - militante do PCP e da Comissão Intersindical - explodisse uma bomba na rua, pouco antes do início da revolta: o que determinou a intervenção de polícia e exército, os pontos estratégicos de Lisboa foram controlados e centenas de militantes revolucionários presos.

Contudo a revolta começou igualmente em Leiria, Marinha Grande, Coimbra, Porto, Alentejo, Algarve, mas acabou por ser reprimida pelas tropas fiéis ao governo. Particularmente furiosos foram os combates na Marinha Grande, onde os populares atacaram as instalações da GNR, apoderaram-se de todas as armas disponíveis e resistiram dois dias aos assaltos da tropa.

O facto é (como comentou com claridade extrema Adriano Botelho nas suas memórias) que o PCP não podia de maneira nenhuma consentir o sucesso duma insurreição organizada pela CGT, senão pagando o preço da falência do seu programa de hegemonia do movimento dos trabalhadores. Manifestando o habitual cinismo dos bolchevistas, Bento Gonçalves atribuiu à CGT a culpa da falência da revolta e deu à insurreição o nome de "anarqueirada".

Depois deste trágico episódio, a CGT - alvo duma vaga repressiva que produziu outras centenas de prisões e deportações - não constituiu mais um perigo real para o PCP, embora este tivesse que se fatigar ainda muito até poder conseguir uma consistência maior (16) e ocupar dentro da classe operária portuguesa o espaço antes ocupado por anarquistas e anarco-sindicalistas.

As terríveis prisões de Angra do Heroísmo, na ilha de Terceira e do Tarrafal em Cabo Verde, encheram-se de militantes libertários. Assim, o regime fascista expulsou da sociedade portuguesa todos os oposicionistas mais perigosos (porque realmente revolucionários), e ao mesmo tempo, varreu o que constituía o verdadeiro impedimento para que o PCP conseguisse o controlo do proletariado português. Não houve a matança em massa, à maneira de um Franco em Espanha: mas o resultado foi politicamente o mesmo.

Como notou Edgar Rodrigues, os vencedores foram duas forças aparentemente antagónicas: os fascistas e os bolchevistas. O PCP, apesar do seu desejo de actuar legalmente, foi declarado fora-da-lei e também os seus militantes forçados à clandestinidade. Naquela altura o Partido Comunista robusteceu muito a estrutura organizativa no estrangeiro (pela ajuda da URSS) e constituiu em Portugal núcleos clandestinos de fábrica.

Se bem que o regime tivesse desmantelado e destruído o movimento anarquista a voz dos libertários não se apagou totalmente. A resistência prosseguiu na clandestinidade: não foi fácil sustentar a esperança, mas a perseverança foi digna de admiração (17). Clandestinamente continuaram a ser publicados os periódicos A Batalha e O Libertário. A Batalha sobreviveu até ao 1950, e reapareceu em 1974.

A polícia descobria um grupo, e outro logo se constituía. Alguns militantes chegaram a instalar uma rádio libertária - a famosa Rádio Fantasma - que, como escreveu Edgar Rodrigues, roubava o sono aos polícias com as suas emissões que desmentiam continuamente as notícias difundidas pela rádio do regime.

Os anarquistas exilados eram muito numerosos na França, Espanha, Suiça, Bélgica, Argentina, Brasil, América do Norte. Em Paris, os exilados criaram um primeiro embrião federativo e em 1932 em Espanha, onde se refugiaram muitos anarquistas depois da constituição da II República espanhola, foi efectivamente criada a Federação Anarquista dos Portugueses Exilados (FAPE), e nasceram núcleos dela em cidades espanholas (Madrid, Barcelona, Valência), Paris e América Latina.

(14) A 7 de Abril de 1927 no Porto; a 20 de Julho de 1928 em Lisboa; em Abril de 1931 na ilha de Madeira; a 26 de Julho de 1931 em Lisboa.
(15) Muito activos foram nisto Mário Castelhano, José Francisco e Manuel Henrique Rodrigues. O Comité foi composto por Acácio Tomás de Aquino, Custódio da Costa e Serafim Rodrigues.
(16) O relatório enviado pelo PCP ao VII Congresso da Internacional Comunista em 1935 falava de apenas 400 membros em Portugal.
(17) E. RODRIGUES, A resistência Anarco-Sindicalista em Portugal, Lisboa 1981; A oposição Libertária à Ditadura, Lisboa 1982; O Porto Rebelde, Porto 2001.

(Continua)

terça-feira, julho 29, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

LUTAS SOCIAIS

Após o breve parêntese ditatorial de Sidónio Pais, as classes políticas republicanas tiveram que encarar uma situação económica muito difícil. O governo orientou-se em favor duma política inflacionista baseada na emissão de moeda, com pouca intervenções na economia do país. Mas foi um desejo piedoso pensar poder ficar de fora dos conflitos sociais originados pelas difíceis condições de vida da maioria do povo português. De facto, o governo logo teve que tabelar o preço do pão, instrumento que a acção e as pressões da UON fizeram permanecer por um tempo adequado, porque se manifestava - embora devagar - uma tendência ao aumento dos salários.

Esta capacidade operativa da UON (11) não deve maravilhar, porque o proletariado industrial (que passou de 142.000 a 217.000 em 1924), concentrado em Lisboa (38% da população) e Porto (30%), naquela altura tinha interesses convergentes com os doutras classes urbanas - como os trabalhadores dos transportes e do comércio - o que fazia dela um grupo de pressão notavelmente forte. E 50% do proletariado operário aderia aos sindicatos.

Tal era a força do movimento operário que nos anos 1917-1924, quando os conflitos sociais causaram um incremento considerável das greves (cerca de 400), a vida de Lisboa e Porto foi paralisada muitas vezes pela acção dos grevistas. Naturalmente não faltou a violenta repressão policial, seguida por atentados e sabotagens, e a luta do proletariado contra a violência de polícias e patrões levou à criação do Comité de Defesa Social e da Legião Vermelha (responsável pelo menos de 200 atentados) (12).

Contudo, apesar da violência das lutas sociais fazer pensar (dentro e fora de Portugal) que fosse possível uma revolução social radical, já em 1922 era um dado adquirido o governo e os patrões poderem retomar o controlo da situação. Os governantes - praticamente entre dois fogos - no início tentaram tirar força ao proletariado fazendo recurso à formas iniciais de política social (13), mas em vão, como se viu a 1° de Março de 1919, quando a UON trouxe à rua pelo menos 30.000 trabalhadores, reivindicando a socialização das terras e industrias. É um facto sintomático que A Batalha se tenha tornado o terceiro jornal nacional.

As pressões do patronado em seguida fizeram mudar de ideia o governo, que abandonou a política social iniciada há pouco. Mas o proletariado organizado demonstrou que tinha ainda uma grande capacidade de luta, de resistência e de mobilização (houve conflitos sociais que demoraram também dois meses); e foi esta força a base da criação da CGT.

A reorganização do patronado deu ao Estado a oportunidade de incrementar a repressão violenta: ocupações armadas de bairros populares, encerramentos de jornais e periódicos do movimento dos trabalhadores, combates armados entre polícias e operários, proclamações de estado de sítio, detenções e deportações. Em 1920 atentados bombistas e sabotagens tiveram uma frequência nunca vista antes; mas por fim, perante a consciência da necessidade de estarem unidos contra o proletariado, agora conseguida pelos capitalistas, bem pouco espaço ficava para o desenvolvimento da táctica habitual dos anarco-sindicalistas: forçar à rendição, de cada vez, os sectores mais fracos do patronado e obter depois uma "reacção em cadeia".

O ano 1920 foi o mais violento na luta sindical e os governos tiveram realmente medo da greve insurreccional defendida por muitos militantes da CGT. O momento mais preocupante para a burguesia foi o mês de Janeiro, quando uma greve geral da CGT degenerou em tiroteios entre polícias e operários, com mortos e feridos, e um destacamento da GNR passou para o lado dos grevistas. Porém, o resultado desta luta demonstrou que as coisas tornaram-se piores para os anarco-sindicalistas. O governo do coronel António Maria Baptista agravou a repressão e - o verdadeiro sinal de refluxo - a greve geral foi uma falência.

Abriu-se um período de frustração, agravada pelos contrastes entre libertários e bolchevistas e pela acção do patronado que actuou muito na direcção de separar os operários especializados e os empregados da função pública (os quais tinham uma capacidade de pressão maior) do resto do mundo do trabalho. As lutas sociais, contudo, prosseguiram enquanto as "revoltas da fome" se estendiam do norte ao sul do país.

O governo de Liberato Pinto derrotou os ferroviários depois duma greve de 70 dias e o sindicato teve que negociar com a empresa a reintegração dos trabalhadores e em troca da libertação dos companheiros presos teve que renunciar ao horário laboral de 8 horas. A derrota foi pesada e a CGT nunca voltou a obter uma vitória importante. Além disso, a constituição do PCP quebrou a unidade do proletariado português: trata-se, todavia, duma consequência daqueles acontecimentos, mais do que duma causa.

É inegável que a falência substancial da luta da CGT - desenvolvida só ao nível económico e não ao nível político - não podia senão empurrar vários militantes à procura de alternativas revolucionárias que lhes apareciam como de amplidão maior (infelizmente tratou-se do bolchevismo). Outros descontentes refluíram no terrorismo individual.

Os bolchevistas não perderam tempo, e desenvolveram uma acção especificamente dirigida à desagregação da CGT, e não se coibiram de dar lugar a campanhas de descrédito contra estimados expoentes anarquistas - como Manuel Joaquim de Sousa - contrários às manobras do PCP para com a CGT e dentro dela.

Alguns militantes aderiram de maneira patente ao PCP (talvez para serem depois expulsos quando não serviram mais, ou serem molestados pelos seus resíduos libertários). Outros, ao contrário, actuaram às escondidas (como Fernando de Almeida Marques, ocultamente em ligações com Bento Gonçalves, na altura secretário do PCP).

O progressivo enfraquecimento do proletariado - estreito entre as derrotas das lutas sindicais e as divisões interiores - e o paralelo fortalecimento do patronato e das suas ligações com as Forças Armadas no final do período, criaram um contexto favorável a um golpe de força direitista definitivo que alcançasse dois objectivos: o desmantelamento do movimento dos trabalhadores e uma nova estruturação do poder político fora da fraqueza parlamentar.

Em 1924 pareceu que a política do governo se poderia mudar num sentido mais favorável aos interesses do povo, se bem que compatível com o sistema dominante. De facto, a positiva vaga emocional produzida nos sectores republicano de centro/esquerda pela vitoria eleitoral do cartel das esquerdas na França - que em Maio de 1924 conduziu ao governo radical/socialista de Eduard Herriot - fez com que em Novembro daquele ano se formasse em Portugal um governo burguês de esquerda, presidido por um político honesto, José Domingues dos Santos.

Este, no início de 1925 atacou directamente a especulação dos bancos e contrariou a confederação patronal, União dos Interesses Económicos. O seu governo (não apoiado formalmente pela CGT, mas não combatido por esta) chegou a atacar os privilégios das assim ditas "forças vivas da Nação", e por isso em Fevereiro de 1925 Domingues dos Santos dissolveu a Associação Comercial de Lisboa, pela sua actividade anti-governativa.

A 6 de Fevereiro o governo recebeu nas ruas o apoio duma grande manifestação popular, promovida por associações republicanas apoiadas pela CGT, o Partido Socialista e o PCP. Mais em vão. No mesmo mês o sector "moderado" da coligação governativa fez cair o governo, e nada pôde fazer para soçobrar a situação a imponente manifestação popular que teve lugar em Lisboa a 13 de Fevereiro, com participação de todas as forças de esquerda (parlamentar e não).

(11) Sobre o assunto, E. RODRIGUES, Os Anarquistas e os Sindicatos, Lisboa 1981.
(12) A.J. TELO, Decadência e Queda da Primeira República, Vol. VI, Lisboa 1980.
(13) Foi constituído o Ministério do Trabalho e foram introduzidos o dia laboral de 8 horas e os seguros sociais.

(Continua)

segunda-feira, julho 28, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

CRISE NA REPÚBLICA


A república parlamentar portuguesa constituiu-se sem a existência duma verdadeira consciência republicana a nível quer de massas, quer de élites políticas. A sua Constituição foi aprovada por uma Assembleia Constituinte essencialmente burguesa (funcionários públicos - civis e militares - proprietários de terras, expoentes das profissões liberais), e naturalmente teve um carácter só liberal/democrático, deu à República uma estrutura política e social destinada inevitavelmente a se chocar com as exigências dos trabalhadores. Por isto, a república foi desde o início afectada por uma fraqueza perniciosa: o tratamento radical cedo ou tarde era inevitável, e foi de direita extrema.

O texto constitucional era expressão do programa político duma burguesia de espírito jacobino e livre-pensador, revolucionária somente por comparação ao regime institucional precedente; uma burguesia no total inadequada para as exigências dum país afligido por problemas sociais e económicos gravíssimos. Desatendida ficou a voz de Afonso Costa que tinha solicitado a inclusão de elementos socialistas no programa republicano.

A natureza da classe dirigente republicana contrariou aqueles componentes que tinham uma vontade de resgate social como classe; e naturalmente, pelo seu forte anti clericalismo, descontentou as massas camponesas controladas pelo clero católico, fechadas numa dimensão mental digna do período mais tenebroso da Idade Média., vítimas dum cristianismo feito de medo, ignorância e superstição.

O débil e inadequado edifício republicano foi atormentado quer por lutas sociais violentas, quer por revoltas militares frequentes, com a agravante duma instabilidade governativa endémica. Houve um clima de violência difusa, que se acentuou durante o pós-guerra de 14-18. Neste período, também em Portugal se gerou uma crise económica profunda, agravando as condições de vida dos trabalhadores, já difíceis, e golpeando esta vez a classe média. A intervenção do exército foi naturalmente apoiada pelo patronado. Devem-se lembrar as intentonas militares de Sinel de Cordes e Filomeno da Câmara em Abril de 1925, de Mendes Cabeçadas em Julho do mesmo ano, de Justiniano Esteves, Martins Júnior e Lacerda de Almeida em Janeiro de 1926.

A desorganização geral do Estado, o aumento dos preços, a falta de alimentos, o desemprego, as greves e as violências, faziam ver que a República continha no seu interior um abismo que se tornava cada vez maior, ameaçando engolir tudo. E como é próprio das classes médias, esta situação caótica robusteceu a sua tendência a favor duma solução autoritária para os problemas do país.

O proletariado organizado na UON primeiro, e pela CGT depois, estava disposto a sair à rua, de armas nas mãos, contra as ameaças das direitas políticas, mas trazia consigo reivindicações que a burguesia não podia satisfazer de maneira nenhuma.

A classe dirigente da I República portuguesa - como depois aconteceu à da II República espanhola - acabou por ficar sitiada entre uma direita extrema reaccionária e uma esquerda revolucionária. Quer a direita, quer a esquerda tinham à disposição os maiores media da época: A Batalha, o grande diário anarco-sindicalista que chegou a ser o terceiro jornal do país, para a esquerda; o Diário de Notícias e o Século para a direita.

Sintoma da gravidade da situação para a república burguesa foi, por exemplo, uma taxa enorme abstenções nas eleições de 1921 (79%), fenómeno que em 1925 se repetiu (80%). E isto, para a um número de eleitores recenseados que - pela legislação daquela altura - era de cerca de 500.000. Considere-se, depois, que os partidos essencialmente exprimiam os interesses das classes urbanas, de modo que aos camponeses faltava uma representação política dentro do sistema institucional.

Os militares não se deixavam ficar de fora(Forças Armadas e Guarda Nacional Republicana), exerciam uma força notável para com os partidos políticos e dentro deles; força que depois de 1925 foi utilizada para subverter pesadamente a própria República.

O ciclo vital da República até ao golpe de 1926 pode ser articulado, esquematicamente, em duas fases: antes e após a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. Na segunda fase os germes da crise foram fatais.

Assim como noutros países a guerra mundial em Portugal favoreceu a realização de lucros enormes por algumas pessoas, sobretudo através de especulações favorecidas pela inflação galopante (inferior somente à da Alemanha e da Áustria): alvos dela foram também sectores das classes médias que tinham rendimentos fixos. O açambarcamento privado de moedas metálicas, o alto nível de emissão de papel-moeda e o déficit crescente da balança comercial, foram todos eles factores que causaram uma depreciação outro tanto elevada do escudo português.

Como sempre acontece, o preço dos lucros enormes ganhos pelos velhos e novos ricos foi pago pelo proletariado, urbano e camponês, e pelos titulares de rendimentos fixos. A situação política foi a caixa de ressonância duma crise económica e financeira progressiva e acelerada: caos governativo (num período de 16 anos Portugal teve 16 Presidentes da República e 45 governos), fragmentação dos partidos políticos, acção dos lobbies para com eles, tentações golpistas crescentes nas Forças Armadas, estrutura económica e produtiva do país muito atrasada, estratificações sociais injustificáveis.

Em Dezembro de 1917, durante a guerra, um golpe pôs no poder um militar, Sidónio Pais (chamado "o Presidente-Rei), que destituiu o Presidente eleito, Bernardino Machado Guimarães, dissolveu o Parlamento, instaurou uma ditadura pessoal e assumiu interinamente a Presidência da República. Para este cargo foi eleito de seguida por sufrágio universal a 28 de Abril de 1918. A 14 de Dezembro do mesmo ano foi assassinado em Lisboa, na estação do Rossio.

A ditadura de Sidónio Pais deixou marcas duradouras na vida política de Portugal, criando uma mentalidade difusa e uma espécie de antecâmara daquela que foi a mais longa ditadura de Europa (1926-1974). Contra os seus opositores Sidónio Pais desencadeou o terrorismo de Estado e o movimento operário foi reprimido brutalmente.

O poder pessoal do sidonismo (o chefe visto como "mandatário da Nação") imprimiu uma resoluta direcção autoritária e anti-parlamentar à história da república, estimulando conspirações e subversões da direita extrema monárquica e dos militares apoiantes dela. Tais conspirações não acabaram quando Portugal voltou ao parlamentarismo (em Maio de 1919 realizaram-se as novas eleições políticas).

Este ano começou mal para a República, com as revoltas monárquicas de Paiva Couceiro no Porto e de Aires d'Ornelas em Lisboa, ambas fracassadas por causa da contra-reacção armada das massas populares urbanas que combateram corajosamente contra os monárquicos. De modo que a 13 de Fevereiro tudo estava já acabado.

Mas se a direita monárquica caiu no descrédito, nem por isso os perigos autoritários desapareceram. Todo o período do pós-guerra foi caracterizado por uma instabilidade política extrema (só em 1920 Portugal teve 7 governos!), um caos administrativo permanente, outras tentativas de golpes militares, atentados, inflação, greves, lutas sociais violentas.

Junte-se a isso a perigosidade da fortemente corporativa GNR, reforçada nos efectivos e no material bélico, que actuava como força de repressão anti-monárquica e anti-operária, mas também pouco fiel ao governo da República. A força de pressão da GNR para com o mundo da política foi enorme, influenciando decisões e chegando a fazer nomear chefe do governo o seu Chefe de Estado-Maior, Liberato Pinto. O governo que lhe sucedeu, chefiado por Bernardino Machado, acusou Pinto de concussão e a GNR (cujo poder, nas intenções de Machado, devia ficar debilitado pelo escândalo) deu um golpe que causou a queda do governo. De qualquer maneira o tribunal militar condenou igualmente Liberato Pinto.

A GNR organizou uma nova conspiração anti-governativa, originando uma instabilidade ulterior, que desembocou na chamada "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921, quando vários fundadores da República foram assassinados (10). O clima de confusão e violência política em Portugal chegou ao grau máximo.

O governo de António Maria da Silva reduziu a GNR ao nível de força armada rural, mas fez do exército a única realidade capaz de intervir com as armas na política, e abriu o caminho ao ataque armado das direita por meio dos militares.

(10) Veja-se a revista História, n.39/2001.

(Continua)