O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL
Pier Francesco Zarcone
GUERRA DE ESPANHA E PÓS-2ª GUERRA: A PARALISIA
Iniciada a revolução espanhola a 19 de Julho de 1936 vários exilados anarquistas com entusiasmo imutável e, como sempre, sem pedir nada foram a Espanha combater contra os franquistas junto aos camaradas da FAI. Alguns nomes: Germinal de Sousa (filho de Manuel Joaquim, foi delegado político da coluna Tierra y Libertad), Aníbal Dantas, José Marques da Costa, José Agostinho das Neves, Firmo Matos, Francisco Taveira, Jaime Brasil, José Gonçalves Lima, José Rodrigues Reboredo, Manuel Boto, Manuel Firmo, Manuel Francisco Rodrigues, Manuel José Lourenço, Raul Pereira dos Santos, etc. E com os camaradas espanhóis ficaram entalados numa "tenaz" constituída pelos fascistas e pelos estalinistas do PCE/PSUC.
Também no seio do anarquismo português a entrada de representantes da CNT/FAI no governo republicano - na sequência da revolta dos militares Franco e Mola, iniciando-se uma guerra civil - provocou polémicas, debates e oposições (lembremos as críticas de Adriano Botelho e Vivaldo Fagundes), mas todos cumpriram com o seu dever revolucionário.
Durante a guerra espanhola prosseguiram as tentativas de lutar contra o regime de Salazar e de o derrubar pelas armas. Nos dias 20 e 21 de Janeiro de 1937 elementos libertários foram autores de atentados bombistas contra a Casa de Espanha e duas emissoras radiofónicas que difundiam propaganda fascista - Rádio Clube Português e a Emissora Nacional. E no mesmo ano três navios da Armada (Dão, Afonso de Albuquerque e Bartolomeu Dias) amotinaram-se nas águas do Tejo contra o regime e a sua política de ajuda militar a Franco. Mas também esta revolta não teve sorte: os navios dos rebeldes foram alvejados por canhões e as tripulações forçadas a se render, aumentando assim o número dos encarcerados e deportados.
A 14 de Julho de 1937 o conhecido anarquista Emídio Santana, com outros companheiros, organizou um atentado bombista contra o próprio Salazar, que infelizmente não teve êxito (18). E nos anos 1937 e 1938 houve a última vaga de detenções de militantes anarquistas.
O trágico desfecho da guerra de Espanha afectou naturalmente os combatentes e exilados portugueses, unidos num só destino com os camaradas espanhóis, uma vez impedido regresso a Portugal: a fuga rumo à França - para os que conseguiram fugir - trouxe o inferno dos campos de concentração, reservados pelo governo burguês de França a milhares de civis e combatentes da guerra civil.
Alguns anarquistas portugueses puderam escapar para América Latina (19), alcançando os camaradas que já aí estavam. A FAPE não sobreviveu à derrota da revolução espanhola.
Os anarquistas em Portugal - sem possibilidade de obterem ajudas, nem refúgio noutro país da península ibérica; internacionalmente abandonados e sem recursos; oprimidos por um regime policial que sem hesitações encarcerava, torturava e matava; sem debates interiores impossibilitados pela clandestinidade - foram vivendo dificilmente durante cerca de trinta anos.
No início da Segunda Guerra Mundial a repressão salazarista - que nunca se reduziu, ao ponto do movimento sindical clandestino desaparecer totalmente - tornou-se mais pesada, e chegou ao seu cume nos anos 1939 e 1940, aproveitando uma conjuntura favorável para os fascismos europeus.
Mas as consequências económicas da guerra manifestaram-se cedo, apesar da neutralidade portuguesa. Algumas pessoas (e empresas), como de costume, enriqueceram-se, mas houve também falências de empresas pequenas e médias e, alguns sectores da pequena burguesia acabaram por ser proletarizados. Tudo isso deu fermento ao regresso das agitações sociais e em 1942 a greve apareceu outra vez na cena política portuguesa.
E manifestaram-se também os anarquistas. As Juventudes Libertárias procuraram a reorganização do movimento anarquista, tendo três objectivos: fortalecer a própria organização, reconstituir a CGT e reorganizar a FARP. Este último propósito foi logo abandonado pelas evidentes dificuldades.
A CGT reapareceu em 1945 mas, sem as estruturas que tinha antes da ditadura e faltando as novas e mais idóneas à altura - não conseguiu sobreviver além de 1950, quando desapareceu definitivamente.
Sabe-se que o regime salazarista, como o franquista em Espanha, não foi arrastado pela derrota de Hitler e Mussolini. Salazar teve tempo bastante para compreender o novo rumo da história e ligou estreitamente Portugal aos interesses do capitalismo ocidental vencedor e do imperialismo anglo/americano: apropriados acordos monetários puseram a economia portuguesa debaixo do controlo do capital estrangeiro mais estreitamente do que antes; durante a guerra, Salazar cedeu bases militares nos Açores, como sinal duma neutralidade colaboradora que lhe trouxe reconhecimentos duradouros até à admissão à ONU e à NATO.
Naturalmente a natureza fascista do regime não mudou: houve um mínimo de cosmética formal e pseudo liberal - que podia encantar só os que já tinham decidido de se deixar encantar, ou seja os Aliados, que precisavam de Portugal para um papel anti-revolucionário e anti-URSS, assim como precisavam de Espanha, apesar de Franco.
De qualquer modo, em Portugal, os poucos libertários devolvidos à liberdade ou em estado de liberdade vigiada (20) utilizaram todos as falhas (bem que mínimas) da espessa malha repressiva do regime. De vez em quando saía algum número de A Batalha, e havia sinais de existência dos anarquistas. Com o esgotamento das referidas tentativas das Juventudes Libertárias, houve uma dispersão dos militantes anarquistas sobreviventes, mas nem todos abandonaram a luta: alguns colaboraram com o Movimento de Unidade Democrática (MUD); outros actuaram em cooperativas e associações, nem faltaram os que procuraram participar nas tentativas de organizar uma luta armada contra o salazarismo como, por exemplo a Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR), fundada em 1967 por Emídio Guerreiro (mação, e combatente na guerra de Espanha com a República) e José Augusto Seabra, composta por elementos de esquerda e libertários: assinados pela LUAR foram os assaltos ao Banco de Portugal na Figueira da Foz e à sede da 3ª Região Militar em Évora.
Os anarquistas não tinham possibilidade de fazerem mais, pela falta de aparelhos, ajudas, ligações internacionais, que - pelo contrário- tinha o PCP. Esperemos que um dia os historiadores dediquem um estudo cuidadoso para aclara bem o papel desenvolvido pelo PCP nos anos da ditadura. A função dos comunistas estalinistas foi sobrevalorizada pela propaganda quer salazarista quer do próprio PCP, sem por isso tirar nada a tantos militantes comunistas (contudo não só eles) encarcerados e torturados pelo regime.
A derrota espanhola e a nova ordem internacional nascida da Segunda Guerra Mundial causaram problemas grandes de acção e de posição ao movimento anarquista de todos os países ocidentais. Em resumo: um dos pilares do anarquismo internacional até à década de 30 do século passado consistiu na preparação da revolução social com a confiante expectativa dela acontecer. Mas, desde o início do século até ao fim do segundo conflito mundial, três acontecimentos incidiram pesadamente e fizeram com que:
- a expectativa revolucionária desapareceu para os anarquistas;
- só os comunistas anarquistas trabalharam nesta direcção apesar de actuarem em condições péssimas, ignorados e amiúde combatidos por outros sectores anarquistas, para os quais a revolução social é uma gloriosa lembrança do passado, um acontecimento irreal hoje e amanhã (e talvez pouco desejável).
Os três acontecimentos causa deste estado de coisas foram:
- a revolução russa, morta pelas armas dos bolchevistas e pelo sucessivo e feroz totalitarismo;
- a revolução espanhola - a única na Europa ocidental após a Comuna de Paris - arrastada pela acção convergente de fascistas e estalinistas, com a diferença que em Espanha os anarquistas começaram a criar uma sociedade nova, comunista libertária;
- a situação internacional de confronto entre dois blocos políticos e militares depois do 1945.
Em Portugal quando já estava claro o rumo trágico da revolução russa, e delineava-se o conflito com os bolchevistas, alguns anarquistas manifestaram e exigência de voltar a meditar sobre o papel e a importância da educação colectiva para a revolução social, evitando que duma revolução prematura derivarem velhos ou novos tipos de Estado - proletário ou burguês sempre Estado é. E foi posto o problema da efectiva possibilidade de realizar o comunismo libertário logo depois da revolução. Após o entusiasmo inicial produzido pela revolução espanhola, o curso dos acontecimentos fez reabrir o problema.
A experiência da luta sangrenta e traidora desenvolvida pelos estalinistas espanhóis contra os anarquistas influiu no meio libertário de maneira que vários sectores se distanciaram quer da revolução quer daquele projecto comunista libertário que desde Bakunin foi a alma do anarquismo histórico e foi vivido por muitos que participaram na revolução espanhola e depois o abandonaram.
Um exemplo sintomático disso, e de relevo, no anarquismo português foi o caso de Germinal de Sousa, personagem saliente da FAI. Na nova situação internacional, razoavelmente preocupado pela férrea hegemonia dos partidos comunistas nos movimentos operários de Itália, França, Espanha e Portugal, e pela capacidade de infiltração deles, de Sousa deslocou-se a favor de um anarquismo não mais de classe, porém centralizado na defesa simples da liberdade e favorável ao bloco ocidental.
Na história do anarquismo contemporâneo o "divisor de águas" decisivo foi a derrota anarquista em Espanha, que fez explodir no seio do movimento internacional uma crise estratégica (e, ainda por cima, de identidade) que - somada à perda de referências no proletariado urbano e camponês - levou à paralisia política e social, não contrabalançada pelos esforços dos sectores anarquistas que ficaram sempre empenhados na luta de classes.
Os anarquistas portugueses (agora mais ou menos 300 veteranos, isolados e agora sem raízes sociais: a sombra do que foi um movimento de massas) deviam decidir sobre dilemas difíceis, sendo o ditador Salazar parte do bloco ocidental: manter a mais completa autonomia ou fazer parte duma coligação antifascista? Ficar fieis ao anarco-sindicalismo, ou escolher uma dimensão libertária mais ampla e soft? Lutar por uma revolução social não mais segura e iminente ou ser a parte libertária dentro dum evolucionismo radical/democrático? Propugnar a luta de classes ou defender só as liberdades ameaçadas por Moscovo, Pequim e os partidos comunistas?
Problemas que não obtiveram do movimento anarquista internacional a resposta idónea para voltar a ter um papel activo e de relevo nas lutas do proletariado, que nunca pararam, mas foram dirigidas por outros.
A situação dos anarquistas portugueses foi a pior e não melhorou. Ainda por cima, quando também na juventude portuguesa se manifestaram agitações e desejos de renovação, o seu alheamento em relação ao anarquismo revelou-se na sua profundidade: os pontos de referência foram sempre dentro do comunismo marxista, nas suas variantes: ortodoxa moscovita, maoista, trozkista, guevarista e depois católica-comunista.
O regime de Salazar não se limitou a destruir o movimento anarquista em Portugal, mas fez-lhe também um serviço péssimo para o futuro, contando com a falta de memória histórica das gerações sucessivas. Assim (como aconteceu em Itália e Espanha) a ditadura escolheu como seu arqui-inimigo não o anarquismo (revolucionário, não disponível para as práticas oportunistas), porém o comunismo estalinista, menos arraigado no país. E contra este alvo dirigiu a acção maciça da sua propaganda a pesar de não ser o PCP uma ameaça verdadeira.
Tudo isso contribuiu ao fortalecimento da penetração comunista no meio proletário português, que acabou por ser convencido de que o inimigo verdadeiro do regime era o PCP!
Vale a pena sublinhar que na queda do regime o papel do PCP foi mínimo, e aquando o 25 de Abril de 1974 os militares golpistas se moveram independentemente do PCP, o povo saiu à rua prescindindo do PCP, animado por esperanças revolucionárias filhas daqueles ideais difundidos pelos anarquistas e anarco-sindicalistas doutras gerações.
(18) E. SANTANA, História dum atentado - O atentado a Salazar, Mem Martins 1976.
(19) Ficaram na Argentina José de Brito e Vivaldo Fagundes; em Brasil Neno Vasco, António Costa Carvalho, Tércio Miranda, Jorge Campelo, Pinto Quartim, Roberto das Neves, Pedro Ferreira da Silva, Inocêncio Câmara Pires, Fernando Neves, Miguel Lopes, António Corrêa Ramiro da Nóbrega, Diamantino Augusto, Luciano Trigo.
(20) Como José Augusto de Castro, Augusto Godinho, João Vieira Alves, Francisco Quintal, Manuel Joaquim de Sousa, Aníbal Dantas, Raul Zacarias, José Rodrigues Reboredo, António Libório, Rodrigo Ferreira, José de Almeida, Adriano Botelho, José Soares Lopes, Júlio Gonçalves Pereira, Almeida Costa, Fernando Barros.
(Continua)
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