sábado, agosto 02, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

A QUEDA DO REGIME E A "REVOLUÇÃO DOS CRAVOS"

1. O 25 de Abril

O regime salazarista - atrasado cultural e estruturalmente - jogou, e perdeu, a sua partida decisiva nas colónias de África, porque fez da defesa da presença portuguesa no ultramar um dogma indiscutível. A luta armada dos movimentos de libertação nas colónias - começada na Angola a 16 de Janeiro de 1961 - não venceu militarmente, mas criou uma situação de empate: nenhuma das duas partes em luta podia vencer no campo de batalha.

A 25 de Setembro de 1968 Salazar - em coma por ter caído duma cadeira - foi substituído no cargo de Presidente do Conselho por Marcelo Caetano, professor universitário de Direito, e morreu em 1970.

Em 1974 ficava bem claro que defender as colónias africanas causava só uma dissipação de vidas humanas e de recursos económicos, sem resultados: esforço que Portugal não se podia permitir.

O país, na altura tinha uma população mais ou menos de 9 milhões de habitantes, e uma economia predominantemente agrícola; cerca de 400.000 desempregados; um milhão de emigrados à procura duma vida melhor na Europa e América do Sul; a taxa de mortalidade infantil era muito alta; os analfabetos eram 25% da população; pelo menos 150.000 pessoas viviam em habitações precárias ou sem condições.

A economia nacional estava nas mãos dum pequeno número de omnipotentes grupos financeiros (21) os recursos mais interessantes do império africano eram "terreno de caça" para as multinacionais estrangeiras. Cerca de 40% da população activa trabalhava na agricultura, sector ao qual estava ligado indirectamente 60% da população; os demais, estavam ocupados na função pública e na indústria.

No espaço de dez anos 12% dos portugueses emigraram, e este fenómeno afectava particularmente o proletariado agrícola (22). No Norte, onde havia uma indústria têxtil forte, os 3/5 da mão-de-obra era composta por operários/camponeses. As terras cultivadas produziam, em 30%, para o auto consumo. As aldeias sem luz eléctrica eram uma miríade. O serviço na tropa, por causa da guerra colonial, mobilizava os jovens (subtraindo recursos às famílias) por 4 anos, e as Forças Armadas tinham 200.000 homens.

Entre o final da década de 1960 e o início da seguinte, as intervenções dos capitais estrangeiros em Portugal aumentaram sensivelmente, e com eles a dependência económica do país (23). Em mãos estrangeiras ficavam as infra-estruturas típicas dum país moderno (24), de maneira que Portugal encontrava-se numa situação de colónia europeia que, por sua parte, tinha um sub imperialismo próprio. E as coisas ficavam agravadas pela aliança de ferro entre a burguesia financeira local e o capital das multinacionais: o que fazia com que as empresas portuguesas pequenas e médias não tiverem espaço vital.

Além disso, uma inflação altíssima junta aos salários baixos empobrecia as massas populares ferozmente (há um fado famoso que, alinhado na política "austera" do regime, louvava a "alegria na pobreza"): o rendimento médio per capita por ano não superava os 658 dólares.

O salazarismo não favoreceu em nada a industrialização porque esta traz consigo uma classe operária e a luta social. A indústria, pouco desenvolvida, estava geograficamente concentrada (Lisboa, Porto, Setúbal, Marinha Grande) para favorecer o controlo da polícia, e o influxo de capitais estrangeiros favoreceu ulteriormente a concentração dos centros de produção no litoral, aumentando o despovoamento progressivo do interior e do norte do país.

Esta atitude reaccionária do católico-fascismo de Salazar revelou-se, no final, uma causa grave de fraqueza para o próprio regime, porque acabou por produzir uma inconsistência numérica e política do bloco social que o apoiava e por conduzir alguns sectores da pequena e média burguesia (entre os quais estudantes, intelectuais e membros das próprias Forças Armadas) a perceber a contradição entre os seus interesses reais e os dum regime esclerosado.

A resposta destes descontentes foi o golpe militar do 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime na sua versão "caetanista" (com as suas inconcludentes veleidades pseudo liberais).

Inegavelmente fez sensação no estrangeiro que militares derrubassem um regime de direita, mas - no fundo - a anomalia era menos efectiva do que aparecia.

A conspiração, hegemonizada por jovens capitães, foi inicialmente estimulada por interesses corporativos dos oficiais do Quadro Permanente, prejudicados e ofendidos por uma disposição do Julho de 1973 que - pelas necessidades de fazer frente às exigências da guerra colonial - abria aos oficiais milicianos o acesso ao Quadro Permanente (depois dum curso intensivo breve na Academia Militar), e permitia a revisão das graduações baseadas nos anos de serviço.

Mas uma série doutros factores alimentou e deu motivações à organização do protesto: o cansaço psicológico por uma guerra inútil, da qual não se via o fim; o facto de muitos oficiais não provirem dos sectores da sociedade que tradicionalmente entravam nas Forças Armadas, mas da mais extensa sociedade civil permeável aos ecos dos acontecimentos europeus e mundiais, podendo assim reflectir melhor sobre o significado do que se passava nas colónias e os interesses em jogo; a consciência da incapacidade de renovação do regime para fazer sair o país da sua secular situação de atraso.

Desta mistura explosiva derivou a radicalização dos jovens oficiais que constituíram o Movimento das Forças Armadas (MFA) e - em parte - optaram a favor duma "transição para o socialismo" depois do 25 de Abril.

Como foi dito, o regime foi derrubado por um golpe, e não por uma revolta popular: golpe que - em termos de classe- viu uma aliança momentânea entre pequena burguesia fardada e expressões do capital, mais ou menos "modernizador", que tinham no general Spínola (1° Presidente Provisório da República) uma garantia não revolucionária.

O apoio popular imediato e maciço ("quando a rua se fez rio") favoreceu uma precipitação dos acontecimentos, forneceu um apoio à parte radical do MFA, empurrando numa direcção provavelmente não prevista no início.

Como quer que seja, nem após o 25 de Abril houve em Portugal uma revolução social. Certo é que um texto específico sobre a "revolução dos cravos" deveria ter uma nota debaixo do título: "de como não se faz uma revolução".

As massas populares inegavelmente perceberam a possibilidade de mudanças profundas e, em muitas circunstâncias, deram vida a formas (também de amplitude notável) de acção directa dignas dum espírito libertário, suscitando medo na burguesia.

Mas, de facto, na confusão daquela altura as massas revolucionárias nem se apoderaram do poder nem o derrubaram: o papel embaraçoso de sujeito activo foi sempre e somente das facções das Forças Armadas.

O próprio empurrão para a transição para o socialismo, sustentada pelo V° governo provisório do general Vasco Gonçalves, foi uma iniciativa vinda de cima.

2. A confusão "revolucionaria" e a falta de espaços para os anarquistas

Caída a ditadura, o movimento anarquista reapareceu, mas não ressurgiu: foi outra coisa e teve outra consistência bem diferente. O comício anarquista de 19 de Julho de 1974, na sede da Voz do Operário em Lisboa, para comemorar a revolução espanhola, reuniu um milhar de pessoas e foi uma explosão de entusiasmo; mas a realidade exterior era o que era.

Em 1974 a situação portuguesa não era a de 1936 em Espanha: o Estado e o exército não se desmoronaram e o movimento anarquista não existia depois das destruições salazaristas. A hegemonia no meio do proletariado organizado ou em motim era estalinista e marxista/leninista, e como cogumelos nasciam partidos, partidinhos e pequenos grupos desta última tendência.

Apareceram o Movimento Libertário Português (MLP), e a Aliança Libertária e Anarco-Sindicalista (ALAS), mas os espaços políticos ficavam ocupados por outros, que gozavam dos resultados de tantos anos de propaganda anticomunista e, ao mesmo tempo, a favor dos comunistas. E, para acabar, havia o exército em armas, com uma atitude nas questões de ordem pública que não perdia o tradicional autoritarismo ibérico dos homens fardados.

Após o 25 de Abril os anarquistas conseguiram publicar vários periódicos: A Batalha, Voz Anarquista, A Ideia, Acção Directa, e outros (25); constituíram grupos de afinidade. Eles nada mais puderam fazer naquela situação.

O regresso a Portugal de algum velho (ou novo) anarquista não podia encher os vazios entre gerações produzidos pelo regime fascista. Os mais conhecidos veteranos das antigas batalhas eram: Francisco Quintal, Emídio Santana, Adriano Botelho, Custódio da Costa, José de Brito e Sebastião de Almeida.

Muitos dos velhos militantes ainda vivos - mais ou menos uma centena, e a idade média era entre 60 e 65 anos - estavam vencidos pelo tempo e pelas sevícias nas prisões: e isso tudo antes de puderem transmitir directamente às gerações novas as suas ideias e experiências. Entre os poucos velhos anarquistas e os novos a ligação foi difícil. E os poucos jovens militantes não tinham uma experiência política real.

Ademais, juntava-se à esta combinação de factores exteriores e interiores uma complicação interior: a mistura de divergências velhas e novas. Por exemplo, na região de Lisboa formaram-se dois pólos: um em redor do periódico A Batalha, com Emídio Santana, e outro na Margem Sul, em Almada, que se exprimiu através do periódico Voz Anarquista.

O resultado foi que nestas condições não emergiu um programa coerente de intervenção nos sectores da sociedade portuguesa ainda não hegemonizados pelos partidos.

Para falar verdade, os anarquistas empenharam-se em contrariar esta hegemonia, e participaram nas campanhas de ocupações de casas (e neste campo a experiência existia: a de Emídio Santana, quem nas décadas de 50 e 60 foi parte activa do movimento dos arrendatários de Lisboa), na propaganda antimilitarista, nos quartéis, favorecendo a vaga de indisciplina, nas lutas operárias em nome da autogestão. E uma comissão de trabalhadores de várias empresas chegou a preocupar seriamente o PCP, quando organizou na capital uma grande manifestação contra os despedimentos e a repressão capitalista.

* * *

Na última fase do regime o PCP (diversamente estruturado e autoritário ao máximo grau), chefiado pelo estalinista Álvaro Cunhal, jogou a carta da infiltração no mundo do trabalho, passando pelos sindicatos oficiais do regime. Decisivo, neste sentido, foi 1969, quando uma legislação nova eliminou o controlo do governo sobre as direcções sindicais. O PCP aproveitou-se logo desta mudança e fez participar militantes escolhidos nas eleições sindicais, conquistando muitas direcções.

Após o 25 de Abril o controlo do PCP sobre o mundo do trabalho tornou-se maciço graças a aquele instrumento importantíssimo que foi a Intersindical, organização de coordenação entre os sindicatos criada em Outubro de 1970, durante a assim chamada "primavera política de Caetano" (a Comissão Intersindical constituída na década de 30, foi dissolvida na década de 40).

A nova Intersindical, caído o regime, foi a correia de transmissão do PCP que - com o apoio dos governos provisórios - permitiu eliminar qualquer possibilidade de acção para os anarquistas. Entre Janeiro e Abril de 1975, o governo emanou o D.L. n.215/75 que consagrou o reconhecimento da Intersindical Nacional como "confederação geral dos trabalhadores portugueses" (26). Não havia mais espaços para aquela vinculação dos anarquistas no mundo do trabalho que, até ao salazarismo, teve no sindicato o canal fundamental de recrutamento de militantes.

Como escreveu Emídio Santana:

"Para trás ficavam umas dezenas de anos de sujeição das pessoas a um padrão cultural e político, a uma absoluta dependência do poder constituído e controlado por um sistema policial dominante. Formara-se gerações no estilo desse padrão e o Estado assumiu a principal gestão das relações económicas e condicionantes da vida, como também a missão que outrora fora das misericórdias. (…) O proletariado, na significação do termo, foi ultrapassado pelo súbdito do aparelho económico estatal. Gradualmente o trabalhador foi-se adaptando; passou a confiar na burocracia do Estado, depois na burocracia sindical, desistiu das suas iniciativas e trocou a sua autonomia confiando nos mecanismos contratuais que lhe asseguravam o mínimo vital e o máximo do que deve pagar de impostos e sugestionado a consumir, mesmo desperdiçar, tudo o que a produção capitalista engendra no objectivo exclusivo do lucro. É no domínio da política, no mais baixo significado do termo, que o homem moderno deposita as suas esperanças, porque é nesse domínio que se decide o seu destino, a taxa de inflação que arbitra os seus salários, a garantia de emprego, como há de carregar com a carga de aquisição da casa própria; se tem transportes e a que preço para ir dormir a casa e regressar ao trabalho.

Portanto, supõe que manejando o voto, apoiando o partido., vitoriando os seus líderes pode, embora indirectamente, influir no seu destino. Mas se chegou a confiar de que ainda a melhor hipótese será um socialismo, e que este só é possível pela "ditadura dos proletários", integra-se, obedece, assume todos os paradoxos a crê no próprio absurdo (credo quia absurdum)" (27).

Contudo, algo do velho espírito anarquista, que o fascismo não logrou extirpar no total, ficava ainda no povo, e molestou muito militares e PCP. Todas as agitações e iniciativas populares dos anos 1974 e 1975 testemunham-no. Uma das mais importantes greves depois da "revolução dos cravos" foi organizada pelos trabalhadores da TAP. Na altura, o Secretário de Estado do Trabalho era Carlos Carvalhas, futuro secretário geral do PCP. Ele não perdeu tempo para ordenar aos grevistas o regresso ao trabalho, mas conseguiu só a oposição também dos trabalhadores membros do seu partido (28). A semana de trabalho de 40 horas - fruto da auto-redução dos trabalhadores da TAP - foi logo reconhecida pela lei.

Depois destes acontecimentos, o governo provisório - onde havia ministros do PCP e do PS - apressou-se a emanar uma lei sobre limitações do direito de greve.

Os partidos políticos (PCP in primis) fizeram tudo o que puderam para travar as formas de democracia directa produzidas pelo povo. Como lembrou Luís Garcia e Silva nas páginas de A Batalha (n.195/2003):

"Quem viveu as AGT (Assembleias Gerais dos Trabalhadores) do pós 25 de Abril decerto recorda a perversão operada por forças políticas que, através de discussões estéreis e do prolongamento artificial das assembleias (…) conduziam ao seu progressivo abandono pelos trabalhadores e permitia ao núcleo partidário fazer aprovar as directivas da sua organização. Três dezenas de militantes partidários, às onze da noite, podiam substituir-se aos 4 ou 5 milhares de trabalhadores duma instituição e revogar deliberações de assembleias matinais com centenas de presenças. Foi também assim que Emídio Santana ao opor-se a tais métodos, na qualidade de presidente AG do seu sindicato, foi objecto de uma tentativa de sequestro e ameaças de agressão física, vindo, desgostoso, a desvincular-se daquela organização sindical".

Muitos trabalhadores consideravam os sindicatos existentes uma relíquia do período fascista, por isso manifestou-se logo a exigência da auto-organização, e houve uma proliferação de comissões de trabalhadores, eleitas democraticamente e independentes: em 1974 foram cerca de 200. Estenderam-se também as ocupações de casas e autogestões (380 no Verão de 1975) e a formação de cooperativas (mais ou menos 500), que demonstraram a possibilidade real de reduzir os preços de serviços e bens.

Embora a maioria dos portugueses não tivessem claras ideias políticas revolucionárias, o desenvolvimento das lutas trouxe consigo a consciência da realidade das relações trabalho/capital, e por isso dos interesses em jogo. E amiúde também das relações que os partidos políticos queriam instaurar com os trabalhadores.

Não se ocuparam só casas não alugadas, mas as terras e a coisa interessante foi que a maioria dos camponeses optou a favor do trabalho colectivo.

É natural que os partidos não olhassem bem estas acções autónomas de classe, e o PCP foi na primeira linha multiplicando as chamadas à moderação, à razoabilidade e os obstáculos.

Neste período convulso de acção directa popular no seio dos conflitos de classe, os capitalistas portugueses reagiram numa maneira devastadora para um país que tinha (e tem) o rendimento per capita entre os mais baixos da Europa: despedimentos, como resposta aos pedidos de salário mínimo nacional; reduções dos créditos bancários para as empresas pequenas e médias; especulações para fazer subir os preços; cancelamento de encomendas; boicotes pelo capital internacional; etc.

Depois da falência da intentona do general Spínola em Março de 1975, por causa do perigo de degeneração da ordem pública o governo, apoiado pelo PCP, lançou uma política de reforma agrária e nacionalizações. O esquema era típico do terceiro mundo - o exército como promotor/instrumento do capitalismo de Estado - e "vendeu" as nacionalizações como passagem ao socialismo. Assim perdeu-se outra ocasião grande e embarcou-se num caminho destinado a durar pouco.

Fugido Spínola, o sector mais radical do MFA - oficiais de esquerda e movimento de sargentos e militares contra o fascismo - apoderaram-se da situação no interior das Forças Armadas, efectuando uma depuração ampla mas não completa. Contudo não ligaram estreitamente as estruturas revolucionárias que existiam nos quartéis com as estruturas populares de luta da sociedade civil (comités de fábrica, de bairro, de prédio, camponeses, etc.) no sentido de criar um bloco social sujeito activo dum projecto de socialismo autogestionário. Nem consideraram que - pelo boicote do capitalismo ocidental e a indiferença do bloco comunista era necessário - por razões económicas - realizar formas de cooperação estreita com os movimentos de libertação nas ricas colónias. Preferiu-se lançar de maneira autocrática nacionalizações não harmonizadas dentro dum projecto global e não apoiadas por estruturas e recursos indispensáveis para administrar uma economia nacionalizada: numa palavra, os militares esquerdistas não dispunham das bases económicas para subtrair Portugal às chantagens dos países fornecedores de capitais e matérias-primas.

Em termos políticos, as oposições foram reforçadas por: uma direcção das reformas pelo vértice; a falta de coordenação com um bloco social de apoio; a presença de sectores de direita, não depurados, nas Forças Armadas; a falta de ligações reais com a sociedade civil.

Assim que as eleições de 25 de Abril de 1975, para a Assembleia Constituinte, deram a vitória ao Partido Socialista de Mário Soares (29), houve a demonstração de se ter formado um bloco social burguês fortalecido pelo descontentamento operário também nos sítios mais "vermelhos" do país.

E no interior do MFA as relações de força mudaram com prejuízo para o sector radical de Vasco Gonçalves, reemergindo a natureza de classe pequeno burguesa da maioria dos oficiais. Natureza que, na altura de Caetano ficava escondida, sem desaparecer substancialmente.

Em síntese: não é que faltou à revolução o partido leninista como organizador ou guia; ou uma coordenação revolucionária para orientar as iniciativas populares em direcção ao objectivo de derrubar o sistema estatal e capitalista. O que se deve sublinhar é que faltaram as próprias condições que permitem falar - com um mínimo de seriedade - de poder popular.

Em Portugal não houve o colapso do Estado e das suas instituições civis e militares, nem um movimento de massa forte e (pela acção de gerações de revolucionários) com a consciência do que se devia fazer, como na Espanha de 1936.

As instâncias a favor do poder popular existiam, mas chocavam contra esses factores negativos, e não tinham um durável apoio de massas, além de tantos e gratuitos slogans que à burguesia aterrorizada pareciam truculentos e preanuncio de sabe-se lá o quê.

Deve ser claro que na maioria das organizações autónomas (comités, colectivos, etc.) não se queria derrubar o poder (a possibilidade real é outra coisa): em linha geral actuavam em direcção ao Estado, ao MFA e aos partidos políticos como grupos de pressão e vigilância, sem manifestarem veleidades nenhumas de os suplantar.

Após a longa noite salazarista não admira se o movimento a favor do poder popular tivesse uma base confusa e heterogénea (operários, pobres, estudantes, intelectuais de esquerda, pequenos comerciantes com problemas económicos, etc.), mais confusa e desorientada pela proliferação de grupos e grupinhos que se disputavam a hegemonia do movimento para a jogar no campo da política e não da revolução.

Assim, no final esse movimento confiou no brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho (organizador militar do golpe do 25 de Abril) - confiança imerecida - o qual revelou-se, na hora de la verdad, incerto, inepto e fiel às hierarquias militares.

Em teoria, considerada a situação geral, só era possível a conquista do Estado, que no momento de tensão maior entrou numa espécie de paralisia. A história das revoluções ensina duas coisas: que o momento favorável - quando existir - passa rápido e é preciso cogliere l'attimo [apanhar o instante], como se diz na Itália; que (é praticamente uma "lei") quando um Estado entra numa situação de paralisia, sem se desmoronar por completo; isso dura pouco tempo, pois logo que se manifestem condições mais favoráveis, o Estado retoma força e vigor. O que em Portugal aconteceu e se manifestou a 25 de Novembro de 1975.

A esquerda extrema não tinha chances. O PCP, que se auto proclamou "partido revolucionário do proletariado" era um caso particular. Em concreto não fez absolutamente nada para uma revolução proletária que a URSS não queria. Contudo - e aqui jogou, mas não sozinha, a imagem dos comunistas fruto da propaganda salazarista - este partido fazia medo, porque era autoritário, sectário, demasiado ligado a Moscovo (e a opinião pública não sabia que a URSS estava contrária à revolução em Portugal) e desenvolvia claramente manobras oportunistas para conquistar a hegemonia também nas instituições do Estado, nos sectores radicais do MFA.

O PCP apostou tudo numa solução de controlo pelo vértice da luta pelo poder, por meio duma maciça e potente infiltração no aparelho estatal, nos media, nos sindicatos, e por causa disso combateu cada forma de autonomia popular. Muito inclinado à conspiração, o PCP em vez de desenvolver um programa político claro que envolvesse ao redor dele um bloco social com hegemonia operária, cimentado pelo consenso e entusiasmo das massas, procurou apresentar-se como força civil de apoio ao governo do MFA, recorrendo aos jogos de cúpulas: o único resultado foi a progressiva alienação da extrema esquerda e das massas que (iludidas pelo próprio PCP) queriam uma revolução verdadeira. E também coligou contra si a maioria das Forças Armadas (nas quais o Partido Comunista acabou por acentuar as contradições de classe) os socialistas e outros partidos.

A acção arrogante do PCP foi um estímulo para no Norte do país começar uma Vendeia lusitana católica e fascista e os Estados Unidos com outros países europeus aumentarem as ajudas aos anticomunistas de Portugal (desde os socialistas até ao clero reaccionário).

A 25 de Novembro de 1975 todas estas forças (às quais se juntaram sectores da extrema esquerda), aproveitando a ingenuidade e as veleidades dalguns sectores esquerdistas do MFA, apresentaram a conta a estes e ao PCP. O novo golpe militar (coniventes o Presidente da República general Costa Gomes, o PS de Mário Soares, a direita fascista, o clero católico, a embaixada USA) destruiu a parte radical das Forças Armadas, deu início ao processo de abandono definitivo do período "revolucionário" e das conquistas dos trabalhadores e pode ser considerado o regresso à natureza verdadeira do golpe do 25 de Abril, que não foi o espírito com que as massas populares viveram aquela data.

Por seriedade, Portugal de hoje deveria festejar esta data como seu dies natalis.

O PCP no último instante fez uma viravolta, abandonou ao seu destino os militares "revolucionários" e os aliados deles, e conseguiu sobreviver legalmente e politicamente, bordejando eleitoralmente à volta dum 10% dos votos.

Cada ilusão acabou assim (30).

(21) Oito grupos controlavam o 80% da economia portuguesa: a) a família Melo, proprietária da Companhia União Fabril (trust que controlava 250 empresas em vários sectores económicos), do Banco Totta & Açores; b) a família Champalimaud, proprietária do Banco Pinto e Sottomayor, e da parta maior das companhias de seguros, monopolista do cimento, com interesses em África e Brasil; c) a família Espírito Santo, que controlava cerca de 200 sociedades, proprietária do Banco homónimo e do Banco Comercial de Lisboa; d) a família Cupertino de Miranda, proprietária do Banco Português do Atlântico; e) o grupo Borges e Irmão, que controlava toda a indústria turística e era proprietário de três jornais; f) M. Jorge de Brito, Proprietário do Banco Intercontinental; g) a União Comercial Sacor, controlada pelas famílias Melo e Cupertino de Miranda, monopolista da refinação e distribuição do petróleo; h) o Banco Nacional Ultramarino, controlado por quase todos os grupos já referidos. M. BELMEIRA MARTINS, Sociedade e Grupos em Portugal, Lisboa 1973.
(22) Como nas zonas de Beja, Setúbal, Santarém, Porto Alegre, Évora.
(23) Em 1971 o capital médio das empresas com capital estrangeiro era 10 vezes superior ao capital das empresas portuguesas. A utilidade de investir em Portugal derivava duma norma de 1965 que permitia a transferência livre de juros, lucros, etc. em favor do capital importado e também o direito de os levantar livremente.
(24) Tratava-se de: telefones, telégrafo, comunicações internacionais, transportes públicos de Lisboa, parte dos transportes ferroviários, e aéreos, frota petrolífera, uma parte grande da energia eléctrica. Além disso os capitalistas estrangeiros possuíam boa parte dos capitais investidos na siderurgia, nas indústrias do cimento, da cerâmica, sacarifica, bancos, refinarias de petróleo com as redes de transformação e distribuição, exclusiva na fabricação de locomotivas, estabelecimento navais, etc.
(25) Em 1975: O Pasquim (Cascais), O Estripador (Amadora), Não!, A Merda, O Planador, O Peido, O Recto Merdário, O Rebelde, O Libertário, Escaramuça, Cadernos Quotidianos da Miséria (Lisboa); em 1976: Satanás (Almada), Apoio Mútuo (Évora); em 977: A Semente (Braga), Agitação (Coimbra), O Chato (Porto), Sabotagem e Subversão Internacional (Lisboa); em 1978 e 1979: Revolta (Leiria), O Meridional (Faro), Recortes do Arco-da-velha (Leiria), Informações & Contactos (Lisboa); em 1985: Fenda (Coimbra), A Urtiga (Lagos), Antítese (Almada); em 1986: A Revolta (Lisboa).
(26) Da Intersindical vai nascer a CGTP (até hoje debaixo do controlo do PCP); em 1978 os socialistas constituíram a UGT.
(27) E. SANTANA, cit., pp. 317-19.
(28) As coisas não se resolveram logo: tropas foram enviadas a ocupar o aeroporto de Lisboa; os membros do Comité de greve foram presos e 200 trabalhadores despedidos, mas cedo reintegrados depois de manifestações e ameaças doutras greves.
(29) O Partido Socialista, independentemente do seu radicalismo verbal, utilizado para ultrapassar o PCP nas preferências dos trabalhadores (de facto o sector realmente radical do partido foi logo progressivamente privado de importância e de rol) teve uma função importante no processo que conduziu Portugal à "normalidade" burguesa, sem evitar alianças não sempre ocultas com a direita.
(30) A bibliografia sobre o assunto é imensa. Damos aqui os títulos mais importantes ou úteis: D. ALMEIDA, Ascensão, apogeu e queda do MFA, Lisboa 1976; A. BARROS, A reforma agrária em Portugal - Das ocupações de terra à formação das novas unidades de produção, Oeiras 1981; J.M. CARVALHO FERREIRA, Portugal no contexto da "Transição para o Socialismo" (História de um equívoco), Lisboa 1997; O.S. de CARVALHO, Alvorada em Abril, Lisboa 1977; J.S. CERVELLÓ, A revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola (1961-1976), Lisboa 1993; E.S. FERREIRA, Conflitos e mudanças em Portugal, 1974-1984, Lisboa 1986; F. MARTINS RODRIGUES, O futuro era agora: o movimento popular do 25 de Abril, Lisboa 1994 e Abril traído, Lisboa 1999; M. MESQUITA-J. REBELO, O 25 de Abril nos media internacionais, Porto 1994; K. MAXWELL, A construção da democracia em Portugal, Lisboa 1999; J.C. PEREIRA BASTOS, Cooperativas depois de Abril. Uma força dos trabalhadores, Coimbra 1977; A. RODRIGUES-C. BORGA-M. CARDOSO, O movimento dos capitães e o 25 de Abril, Lisboa 1974; P. SCHMITTER, Portugal: do Autoritarismo à democracia, Lisboa 1999; J. Varela Gomes, Esta democracia filofascista, Lisboa 1999.

(Continua)

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