segunda-feira, julho 28, 2008

O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Pier Francesco Zarcone

CRISE NA REPÚBLICA


A república parlamentar portuguesa constituiu-se sem a existência duma verdadeira consciência republicana a nível quer de massas, quer de élites políticas. A sua Constituição foi aprovada por uma Assembleia Constituinte essencialmente burguesa (funcionários públicos - civis e militares - proprietários de terras, expoentes das profissões liberais), e naturalmente teve um carácter só liberal/democrático, deu à República uma estrutura política e social destinada inevitavelmente a se chocar com as exigências dos trabalhadores. Por isto, a república foi desde o início afectada por uma fraqueza perniciosa: o tratamento radical cedo ou tarde era inevitável, e foi de direita extrema.

O texto constitucional era expressão do programa político duma burguesia de espírito jacobino e livre-pensador, revolucionária somente por comparação ao regime institucional precedente; uma burguesia no total inadequada para as exigências dum país afligido por problemas sociais e económicos gravíssimos. Desatendida ficou a voz de Afonso Costa que tinha solicitado a inclusão de elementos socialistas no programa republicano.

A natureza da classe dirigente republicana contrariou aqueles componentes que tinham uma vontade de resgate social como classe; e naturalmente, pelo seu forte anti clericalismo, descontentou as massas camponesas controladas pelo clero católico, fechadas numa dimensão mental digna do período mais tenebroso da Idade Média., vítimas dum cristianismo feito de medo, ignorância e superstição.

O débil e inadequado edifício republicano foi atormentado quer por lutas sociais violentas, quer por revoltas militares frequentes, com a agravante duma instabilidade governativa endémica. Houve um clima de violência difusa, que se acentuou durante o pós-guerra de 14-18. Neste período, também em Portugal se gerou uma crise económica profunda, agravando as condições de vida dos trabalhadores, já difíceis, e golpeando esta vez a classe média. A intervenção do exército foi naturalmente apoiada pelo patronado. Devem-se lembrar as intentonas militares de Sinel de Cordes e Filomeno da Câmara em Abril de 1925, de Mendes Cabeçadas em Julho do mesmo ano, de Justiniano Esteves, Martins Júnior e Lacerda de Almeida em Janeiro de 1926.

A desorganização geral do Estado, o aumento dos preços, a falta de alimentos, o desemprego, as greves e as violências, faziam ver que a República continha no seu interior um abismo que se tornava cada vez maior, ameaçando engolir tudo. E como é próprio das classes médias, esta situação caótica robusteceu a sua tendência a favor duma solução autoritária para os problemas do país.

O proletariado organizado na UON primeiro, e pela CGT depois, estava disposto a sair à rua, de armas nas mãos, contra as ameaças das direitas políticas, mas trazia consigo reivindicações que a burguesia não podia satisfazer de maneira nenhuma.

A classe dirigente da I República portuguesa - como depois aconteceu à da II República espanhola - acabou por ficar sitiada entre uma direita extrema reaccionária e uma esquerda revolucionária. Quer a direita, quer a esquerda tinham à disposição os maiores media da época: A Batalha, o grande diário anarco-sindicalista que chegou a ser o terceiro jornal do país, para a esquerda; o Diário de Notícias e o Século para a direita.

Sintoma da gravidade da situação para a república burguesa foi, por exemplo, uma taxa enorme abstenções nas eleições de 1921 (79%), fenómeno que em 1925 se repetiu (80%). E isto, para a um número de eleitores recenseados que - pela legislação daquela altura - era de cerca de 500.000. Considere-se, depois, que os partidos essencialmente exprimiam os interesses das classes urbanas, de modo que aos camponeses faltava uma representação política dentro do sistema institucional.

Os militares não se deixavam ficar de fora(Forças Armadas e Guarda Nacional Republicana), exerciam uma força notável para com os partidos políticos e dentro deles; força que depois de 1925 foi utilizada para subverter pesadamente a própria República.

O ciclo vital da República até ao golpe de 1926 pode ser articulado, esquematicamente, em duas fases: antes e após a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. Na segunda fase os germes da crise foram fatais.

Assim como noutros países a guerra mundial em Portugal favoreceu a realização de lucros enormes por algumas pessoas, sobretudo através de especulações favorecidas pela inflação galopante (inferior somente à da Alemanha e da Áustria): alvos dela foram também sectores das classes médias que tinham rendimentos fixos. O açambarcamento privado de moedas metálicas, o alto nível de emissão de papel-moeda e o déficit crescente da balança comercial, foram todos eles factores que causaram uma depreciação outro tanto elevada do escudo português.

Como sempre acontece, o preço dos lucros enormes ganhos pelos velhos e novos ricos foi pago pelo proletariado, urbano e camponês, e pelos titulares de rendimentos fixos. A situação política foi a caixa de ressonância duma crise económica e financeira progressiva e acelerada: caos governativo (num período de 16 anos Portugal teve 16 Presidentes da República e 45 governos), fragmentação dos partidos políticos, acção dos lobbies para com eles, tentações golpistas crescentes nas Forças Armadas, estrutura económica e produtiva do país muito atrasada, estratificações sociais injustificáveis.

Em Dezembro de 1917, durante a guerra, um golpe pôs no poder um militar, Sidónio Pais (chamado "o Presidente-Rei), que destituiu o Presidente eleito, Bernardino Machado Guimarães, dissolveu o Parlamento, instaurou uma ditadura pessoal e assumiu interinamente a Presidência da República. Para este cargo foi eleito de seguida por sufrágio universal a 28 de Abril de 1918. A 14 de Dezembro do mesmo ano foi assassinado em Lisboa, na estação do Rossio.

A ditadura de Sidónio Pais deixou marcas duradouras na vida política de Portugal, criando uma mentalidade difusa e uma espécie de antecâmara daquela que foi a mais longa ditadura de Europa (1926-1974). Contra os seus opositores Sidónio Pais desencadeou o terrorismo de Estado e o movimento operário foi reprimido brutalmente.

O poder pessoal do sidonismo (o chefe visto como "mandatário da Nação") imprimiu uma resoluta direcção autoritária e anti-parlamentar à história da república, estimulando conspirações e subversões da direita extrema monárquica e dos militares apoiantes dela. Tais conspirações não acabaram quando Portugal voltou ao parlamentarismo (em Maio de 1919 realizaram-se as novas eleições políticas).

Este ano começou mal para a República, com as revoltas monárquicas de Paiva Couceiro no Porto e de Aires d'Ornelas em Lisboa, ambas fracassadas por causa da contra-reacção armada das massas populares urbanas que combateram corajosamente contra os monárquicos. De modo que a 13 de Fevereiro tudo estava já acabado.

Mas se a direita monárquica caiu no descrédito, nem por isso os perigos autoritários desapareceram. Todo o período do pós-guerra foi caracterizado por uma instabilidade política extrema (só em 1920 Portugal teve 7 governos!), um caos administrativo permanente, outras tentativas de golpes militares, atentados, inflação, greves, lutas sociais violentas.

Junte-se a isso a perigosidade da fortemente corporativa GNR, reforçada nos efectivos e no material bélico, que actuava como força de repressão anti-monárquica e anti-operária, mas também pouco fiel ao governo da República. A força de pressão da GNR para com o mundo da política foi enorme, influenciando decisões e chegando a fazer nomear chefe do governo o seu Chefe de Estado-Maior, Liberato Pinto. O governo que lhe sucedeu, chefiado por Bernardino Machado, acusou Pinto de concussão e a GNR (cujo poder, nas intenções de Machado, devia ficar debilitado pelo escândalo) deu um golpe que causou a queda do governo. De qualquer maneira o tribunal militar condenou igualmente Liberato Pinto.

A GNR organizou uma nova conspiração anti-governativa, originando uma instabilidade ulterior, que desembocou na chamada "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921, quando vários fundadores da República foram assassinados (10). O clima de confusão e violência política em Portugal chegou ao grau máximo.

O governo de António Maria da Silva reduziu a GNR ao nível de força armada rural, mas fez do exército a única realidade capaz de intervir com as armas na política, e abriu o caminho ao ataque armado das direita por meio dos militares.

(10) Veja-se a revista História, n.39/2001.

(Continua)

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