domingo, junho 26, 2011

O que se pode esperar de Nuno Crato

Antes de partirmos para grandes prognósticos acerca do que possa vir a ser a actuação de Nuno Crato como ministro, importa sempre colocarmos à cabeça a lembrança de que este governo tem um programa a aplicar e que esse é o famigerado receituário da “troika”. Não o frisamos apenas à laia de ritual de uma crítica banalizada de tão repetida. Fazemo-lo porque sabemos bem como isso irá condicionar todas as políticas deste governo.
Entretanto, à luz do que Nuno Crato tem vindo a defender – e também do que ele tem silenciado -, podemos inferir, com alguma razoabilidade,  algo do que ele poderá fazer. Se algumas das suas decisões previsíveis são, em nosso entender, boas notícias para a chamada «Escola Pública», outras nem por isso.
Comecemos pelas boas (com as respectivas reservas ou condições necessárias para que o bom não se venha a transformar em mau ou péssimo):
  • Introdução de exames nacionais a todas as disciplinas no final de cada ciclo de ensino. Uma medida positiva, desde que não traga consigo o fetichismo do exame, com a noção delirante de que ele será a panaceia milagrosa para todos os males que afectam o sistema educativo.
  • Revisão profunda do Estatuto do Aluno, ou revogação do actual com sua substituição pura e simples, no sentido de reforçar a autoridade do professor na sala de aula, de agilizar e de desburocratizar os mecanismos disciplinares e de dotar as escolas de real autonomia para a implementação dos mesmos. Temos pena, como agora se diz, mas esta é uma medida básica para acabar com a cultura “eduquesa” do coitadinho e da vítima, para proteger professores e alunos da violência que se abate sobre eles em tantas escolas, e para reintroduzir nos estabelecimentos de ensino condições mínimas de trabalho e de convivência. Para quem, como Nuno Crato, tem clamado contra a degradação do ambiente escolar, esta medida deve ser fundamental. Entretanto, sabemos bem que o fim da violência nas escolas e o desrespeito que muitas vezes atinge a figura do professor não se resolvem só com alterações na lei. Mas é um primeiro passo. É, pelo menos, um instrumento sem o qual tudo se torna mais difícil.
  • Fim das «Novas Oportunidades» e dos CEFAS e eventual reintrodução do currículo diurno no ensino nocturno. O programa do PSD é omisso e vago nesta matéria, o que abre caminho para todas as eventualidades, mesmo para as piores. Mas pode Nuno Crato, enquanto ministro, pugnar por critérios de exigência e de rigor no ensino e continuar, na prática, a pactuar com a imensa fraude propagandística que tem marcado as «Novas Oportunidades»? Um módico de coerência e de pudor político aconselham, nesta matéria, uma decisão rápida e expedita.
  • Simplificar os programas e os currículos, desembaraçá-los das tretas “pedagógicas”, definir claramente os conhecimentos a adquirir e a avaliar, e reforçar a autonomia dos professores no ensino dos mesmos. Uma medida, ou um conjunto de medidas, essenciais para a sanidade do sistema educativo e das práticas lectivas. Só que isto envolve um problema: a tentação de se fazer mais uma mega-reforma dos currículos e dos programas, com todos os custos e desgastes que isso implica. Uma solução alternativa poderia ser a de reformar profundamente, e para já, os três ciclos do ensino básico, visto que é aí que reside a raiz de todos os nossos problemas e atrasos. O que, por sua vez, acarreta um perigo (nada negligenciável): o de que essa reforma, dentro do espírito austeritário do actual governo, se faça contra os professores – com supressão arbitrária de disciplinas e cortes nos tempos da sua leccionação – sem quaisquer vantagens para os alunos. As últimas equipas ministeriais já começaram a dar um lamiré nesse sentido.
Depois temos aquelas zonas de sombra acerca das quais não se conhece a doutrina de Nuno Crato. A maior dessas zonas prende-se com o modelo de avaliação dos professores. O actual ministro atirou para o ar, no passado recente, umas tantas fórmulas nebulosas que pouco esclarecem. Algumas são mesmo preocupantes, como a ideia de avaliar os professores com base nos resultados que os seus alunos atingem nos exames. Sejamos claros neste ponto: os professores não são inteiramente alheios a esses resultados, como é óbvio. Mas também não são os seus únicos responsáveis. Existem vários outros factores, a começar pelos próprios alunos. Em contrapartida, também é verdade que remeter a avaliação do desempenho para a consideração das “muitas variáveis” que determinam o trabalho docente quase sempre desagua no pesadelo das grelhas “multidimensionais” que fizeram do modelo ainda em vigor um monstro absurdo. Uma avaliação dos professores que se queira mais do que formativa, e ao mesmo tempo simples, justa e não burocrática, é um enigma que permanece por resolver. A este respeito, as soluções de Nuno Crato estão no segredo da sua cabeça, se é que ela dedicou algum tempo a pensar seriamente o assunto…
Finalmente, temos os aspectos claramente negativos que os professores podem esperar do consulado de Nuno Crato. E esses não são de molde a deixar-nos tranquilos:
  • Tudo indica que Nuno Crato não pretende modificar uma linha no Estatuto da Carreira Docente para retirar dele os estrangulamentos espúrios que bloqueiam a progressão na carreira. Isto casa, de resto, com o programa da “troika”. Por aqui, les jeux sont faits.
  • Nuno Crato fala muito em acabar com o centralismo do Ministério da Educação e em devolver às escolas uma efectiva autonomia, que inclusive abranja as cargas lectivas, os horários, etc. Nós também achamos que a autonomia é uma coisa muito bonita e necessária. Mas temos de saber em que quadro essa autonomia se realiza. Porque se o quadro é o de uma gestão autoritária e semi-empresarial das escolas, sem qualquer controlo democrático por parte de quem nelas trabalha, a autonomia facilmente se converte em arbitrariedade e despotismo. Às vezes, o chamado «centralismo» do Estado, com leis claras que cobrem todos de forma equitativa, pode ser a condição sem a qual o trabalhador fica totalmente desprotegido face à entidade patronal ou à chefia no seu local de trabalho. Até ver, não nos parece que Nuno Crato se mostre sensível a este “pormenor”.
  • Dado que o programa do PSD sugere claramente a intenção de prosseguir com a aberração que consiste em multiplicar os mega-agrupamentos, e não parecendo que Nuno Crato se oponha a semelhante delírio, temos razões para pensar que nenhum travão será colocado a uma medida de efeitos puramente economicistas, que irá infernizar ainda mais a organização e o funcionamento das escolas, minando em grande medida o belo desiderato da «autonomia». 
  • Em linha com a sua defesa da autonomia das escolas (mitigada como vai ser pelo que acabámos de referir), tudo aponta para que Nuno Crato veja com bons olhos a municipalização dos estabelecimentos de ensino, a sua crescente “empresarialização”, o fim dos concursos nacionais como forma de garantir uma colocação dos professores feita com regras de transparência e de justiça, e a correlativa entrega às escolas (e aos ditos municípios) dessa mesma colocação, com tudo o que isso envolve de arbítrio e de nepotismo, etc., etc. O único comentário adicional que isto nos merece é a surpresa de vermos certos apoiantes entusiastas de Nuno Crato, que têm também sido dos mais críticos deste modelo de «autonomia» das escolas, silenciosos a respeito desta muito previsível orientação do actual ministro. Poderão dizer que é ainda muito cedo para desenharmos tais cenários. Mas este é um aspecto em que estamos francamente de “pé atrás”.
O balanço antecipado que aqui fazemos peca certamente por várias lacunas. Mas elas também se devem ao facto de pouco sabermos, afinal, sobre o que Nuno Crato pretende efectivamente fazer. Estamos, por ora, condenados a fazer prognósticos com base nas declarações, apesar de tudo vagas, com que ele foi construindo a imagem de “especialista” em educação.
Se quisermos ser honestos, diremos que, no mais essencial, Nuno Crato é, por enquanto, muito parecido com a Rússia de Churchill: um mistério embrulhado num enigma. 
In APEDE

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