terça-feira, junho 07, 2011

Refugiados: a maior catástrofe da guerra da Líbia

O drama dos refugiados é a maior das tragédias da guerra da Líbia. As vítimas só têm inimigos: o regime de Khaddafi, o regime "pró-democracia" de Benghazi e a agressão da NATO.
No momento em que a NATO decidiu prolongar pelo menos por mais três meses a guerra de agressão contra a Líbia e em que se prepara para lançar uma segunda fase ainda mais violenta mais 200 fugitivos do pesadelo desapareceram quinta-feira nas águas do Mediterrâneo quando pretendiam alcançar a costa europeia em condições muito precárias; a mesma NATO que ainda não explicou porque não socorreu cerca de seis centenas de emigrantes à deriva nas águas mediterrânicas no final de Abril e deixou morrer mais de 200. Os estrangeiros e os líbios que procuram escapar ao terror são as personagens de uma tragédia humanitária, a maior do conflito, que a União Europeia continua a fazer por ignorar. E, porém, o drama desses seres humanos é absoluto: só têm inimigos – o regime de Khadaffi, o regime «pró-democracia» de Benghazi e as tropas agressoras da Aliança Atlântica. A reportagem de Carine Fouteau, da agência francesa Mediapart, ilustra a envergadura da catástrofe e a conivência dos interesses por ela responsáveis.
Reportagem : Carine Fouteau (agência Mediapart)
Os estrangeiros que ainda estão na Líbia sentem-se em perigo de morte. Fogem usando todos os meios. A pé ou de camião para Oeste (Tunísia), para o Leste (Egipto) e o Sul (Níger e Chade). Em barcos, os «boat people», para Norte através do Mar Mediterrâneo. Testemunhos recolhidos por associações e organizações internacionais em Lampedusa (Itália) e Malta revelam a existência de condições infernais de travessia, de fome, sede, doenças, corpos lançados às águas. E antes de tudo isto, condições de vida desumanas na Líbia : os imigrantes são perseguidos, ou mesmo mortos, nomeadamente nas zonas controladas pelos rebeldes.
Desde o início da guerra, 885 mil pessoas deixaram a Líbia para fugir à violência.
Entre elas estão poucos líbios. A Europa, principalmente a Itália, acolheu cerca de 15 mil, ou seja, menos de dois por cento. Os expatriados ocidentais regressaram há muito aos seus países, transportados em aviões ou navios militares. Na Líbia ficaram apenas cidadãos de Estados demasiado pobres para financiar o seu repatriamento ou pessoas vítimas de perseguições.
Os tunisinos deixaram de chegar (remporariamente ?) às costas italianas. Em compensação, os barcos que partem da Líbia são cada vez mais numerosos, transportando nigerianos, ganeses, malianos, marfinenses, eritreus e somalis. Os homens já não estão sós. Mulheres e crtianças também embarcam, pondo assim em risco as suas vidas.
Segundo os cálculos do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), desde 25 de Março 1200 pessoas perderam a vida no mar. Na quinta-feira, 2 de Junho, as autoridades tunisinas informaram  que entre 200 a 270 migrantes fugindo da Líbia desapareceram ao largo das costas da Tunísia. Na manhã desta sexta-feira já não havia qualquer esperança de os encontrar. Mais de 600 outras pessoas conseguiram ser socorridas durante os últimos dias.
A maior parte desses fugitivos trabalhavam na Líbia há vários anos e não tinham a intenção de se deslocar para a Europa. Este destino apenas se impôs por falta de alternativa.
Dawit, um etíope de 35 anos acolhido em Malta contactado por telefone através de responsáveis de associações em missão na ilha, conta que na precipitação se viu obrigado a partir com a mulher e um filho de 16 meses. Descreve um sistema organizado implicando, à vez, a oposição ao regime e as autoridades líbias. «Vivíamos nos subúrbios de Tripoli, em Ben Ashur», explica. «Eu ensinava ingês, tinha uma vida boa. A seguir aos levantamentos as pessoas começaram a dizer que nós, africanos, éramos mercenários ao serviço de Khaddafi. O nosso senhorio  quase nos despejou, não queria continuar a alugar-nos a casa. Os comerciantes deixaram de nos vender leite ou pão. Todos os líbios nos diziam para nos irmos embora. Fomos atacados, tivemos medo.
«Vivíamos na Líbia desde 2007 mas não tivemos escolha. Pensei em fugir para Zauia, para  a Tunísia. Mas era demasiado perigoso. As estradas estavam bloqueadas por homens armados pró-Khaddafi. Diziam-nos para saírmos por mar. Partir para o Egipto ou para o Sul era muito longe e arriscado, principalmente com uma criança».
E a Etiópia ?
«Abandonei o meu país por razões políticas; era impensável regressar», respondeu Dawit.
Restava uma opção: o mar. E como o cidadão etíope não estava sozinho nesta situação, foi organizado uma espécie de comboio. «Fomos reunidos dois dias antes da partida», conta. «Foi em Tripoli. Cerca de 300 pessoas foram concentradas num espaço ao ar livre. Havia eritreus, etíopes e alguns malianos e marfinenses. A organização estava a cargo de jovens líbios, com menos de 30 anos, desarmados e sem uniforme mas que nos pressionavam dizendo que se não nos fossemos embora seríamos presos. Meteram-nos num autocarro da cidade e mesmo assim fizeram-nos parar. Mas quando o motorista disse que íamos para o porto deixaram-nos seguir e desejaram-nos boa sorte. No porto estavam militares a dirigir as operações de embarque».
A travessia durou 34 horas, a bordo de «um grande barco de pesca de madeira e muito velho», transportando 280 passageiros amassados uns contra os outros. Nenhum líbio, com excepção, «talvez», do comandante; «não o conseguimos ver porque ele se escondia».
Dawit chegou a Malta em 29 de Março de 2011, apresentando então um pedido de asilo. O processo está em apreciação e não lhe resta outra possibilidade que não seja esperar num enorme hangar com mais cerca de 30 famílias também fugidas da Líbia.
Para ele, os migrantes originários da África Sub-Saariana são uma moeda de troca : « Khaddafi serve-se de nós como sempre fez. Dantes, impedia os migrantes de se irem embora, partir era um crime. Os que tentassem eram enviados para a prisão, em condições muito duras. O preço dos bilhetes era muito elevado, entre 1500 e dois mil euros. Hoje mudou tudo. Paguei 600 euros mas muitos conseguiram vir-se embora sem pagar quase nada. Hoje em dia é muito difícil dizer quem é quem na Líbia porque todos os homens estão armados, civis ou não. O que posso dizer é que os que se opõem a Khaddafi também querem que nos venhamos embora porque nos tomam por mercenários. E as forças lealistas também, porque Khaddafi quer mostrar aos europeus que cumpre as suas ameaças».
Para obrigar os migrantes a embarcar, as autoridades líbias chegam a usar armas, segundo testemunhos recolhidos pelo ACNUR e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), estrutura intergovernamental mandatada para reencaminhar os estrangeiros para os seus países.
Pessoas que chegaram a Lampedusa no fim de semana de 7-8 de Maio contaram que foram testemunhas do naufrágio de um barco transportando entre 500 e 600 refugiados. Muitos dos que viram os corpos à deriva perderam a coragem e já não quiseram subir a bordo do barco que lhes estava destinado.
Segundo os testemunhos, porém, soldados e responsáveis líbios, armados e em uniforme, obrigaram-nos a partir disparando para o ar.
No seu blog Fortaleza Europa o jornalista italiano Gabriele del Grande, especialista em questões migratórias entre África e a Europa, cita migrantes afirmando que foram conduzidos à força para os barcos e obrigados a embarcar sob a ameaça de militares pró-Khaddafi.
«Fomos dos primeiros a ser levados das nossas casas. Ao princípio não éramos muitos no camião mas, pouco a pouco, outras pessoas foram subindo. No fim éramos pelo menos 200. Encerrados na penumbra. Obrigados a estar de pé uns contra os outros. Estava calor, o cheiro era pestilento, as crianças choravam», contou Kingsley, que vivia em Misrata.
Levado para perto de Zuwara, a  Oeste de Tripoli, prossegue a narração : « Ali ficámos um pouco mais de cinco dias. Era uma casa velha em ruínas (…) e havia militares por todo o lado. Os que usavam pequenas braçadeiras verdes eram soldados de Khaddafi, tenho a certeza. No interior éramos cerca de 1500, entre os quais muitas crianças. Nem queira saber as condições sanitárias. Todos os dias chegavam novos camiões e outros partiam. E foi aí que percebemos que Itália seria o nosso destino ».
«Um dia levaram-nos para o porto de Zuwara, já de noite. Tínhamos, porém, de esperar o nascer do dia para poder partir porque havia aviões da NATO sobrevoando a cidade. E os militares mandaram-nos esconder. Na manhã seguinte dividiram-nos : 320 para um barco e 280 para outro. Tínhamos medo de morrer no mar mas não havia escolha, estávamos sob a mira das espingardas». O barco de Kingsley partiu a 27 de Abril.
Como explicou Dawit, a violência contra os migrantes sub-saarianos não é um exclusivo das forças fiéis a Khaddafi. Regressada de uma missão à fronteira entre o Egipto e a Líbia pela Federação Internacional das Ligas dos Direitos Humanos (FIDH), Geneviève Jacques evoca as agressões de todos os géneros de que são vítimas os migrantes por parte de « grupos armados » não identificados.
Os testemunhos recolhidos num hangar de betão em Sallum, onde trabalhadores migrantes da África Sub-Saariana esperam a partida, sentados ou deitados em cartões expostos ao sol, são elucidativos. Como o de um jovem chadiano de 25 anos, saído de Benghazi para fugir aos combates mas sobretudo porque « aí todos os africanos de pele negra são considerados mercenários ao serviço de Khaddafi. E muitos foram agredidos por isso».
Espancamentos, roubos, insultos, «despedimentos» sem pagamento: os tratamentos degradantes parecem ser o seu quotidiano.
Os homens com os quais a FIDH conseguiu contactar trabalhavam em ofícios como condutores de camelos, trabalhadores rurais ou soldadores. Vivendo principalmente em bairros separados, já alguns tinham sofrido a violência racista, que se tornou mais comum desde o início da guerra. «Os migrantes sofrem de fome na Líbia», insiste Geneviève Jacques. «E para as pessoas que vivem mais longe das fronteiras a única solução é procurarem o mar». Existem descrições, e também provas, igualmente reveladas por Gabriele del Grande: vídeos captados com telemóveis mostrando «corpos deitados, visivelmente mortos, e homens armados».
Entretanto, refugiados oriundos da Líbia continuam a chegar à Europa. Só nos últimos dias, 1600 acostaram em Lampedusa e 900 na Sicília. O porta-voz da ACNUR em Itália, Laura Boldrini, confirma que as condições de partida, que mudaram radicalmente de antes para depois dos bombardeamentos, são cada vez mais perigosas. «Muitas pessoas dizem-nos que a travessia não custa quase nada, que basta dar um pouco de dinheiro ou quaisquer objectos pessoais», afirma enquanto os migrantes tunisinos dizem pagar até 1200 euros. «Os barcos são de tal modo velhos», prossegue Laura Boldrini, «que não deveriam poder navegar. Não estão apenas em ruínas; também são carregados em excesso a pontos de ficarem sem equilíbrio. É aí que metem entre 200 e 800 pessoas. É evidente que existe toda uma organização por detrás. As pessoas são reunidas previamente; não se conseguem deslocar centenas de pessoas desta maneira, isso supõr uma qualquer forma de gestão. Esta situação na Líbia não tem nada a ver com o que se passava antes, quando as pessoas fugiam em pequenas embarcações».
E os guardas costeiros líbios, dos tempos em que o ditador procurava satisfazer os europeus, impediam as suas partidas.
Laura Boldrini nota também que «as partidas e as chegadas são mais fluidas» em Lampedusa, onde os exilados, que apresentam quase todos um pedido de asilo, ficam apenas algumas horas antes de serem conduzidos em embarcações para centros ad-hoc na Península. Como se a sorte reservada aos tunisinos, bloqueados na ilha por vários dias, não fosse mais do que o resultado de uma vontade política de criar artificialmente um problema rapidamente divulgado pelos media.
Artigo publicado no portal do Bloco de Esquerda no Parlamento Europeu

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