Boaventura: “Morreu o líder político democrático mais carismático das últimas décadas”
O sociólogo português e
diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
Prof.Boaventura de Souza Santos, faz uma profunda análise sobre o legado
deixado por Hugo Chávez
Para Boaventura, “Chávez contribuiu decisivamente para consolidar a democracia no imaginário social (Foto: Antonio Cruz/ABr
Em artigo, recebido pelo professor Ladislau Dowbor, e publicado em seu
site,
o sociólogo e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, aborda o legado de Hugo Chávez para
a Venezuela e para a América Latina. Boaventura trata de questões como a
redistribuição da riqueza na Venezuela, a integração política da
América Latina, o anti-imperialismo, o socialismo do século XXI e o
Estado comunal. Além dos desafios que a Venezuela terá de enfrentar após
a morte do homem que o sociólogo português classifica como o “líder
político democrático mais carismático das últimas décadas”.
Chávez: o legado e os desafios
Por Boaventura de Sousa Santos
Morreu o líder político democrático mais
carismático das últimas décadas. Quando acontece em democracia, o
carisma cria uma relação política entre governantes e governados
particularmente mobilizadora, porque junta à legitimidade democrática
uma identidade de pertença e uma partilha de objetivos que está muito
para além da representação política. As classes populares, habituadas a
serem golpeadas por um poder distante e opressor (as democracias de
baixa intensidade alimentam esse poder) vivem momentos em que a
distância entre representantes e representados quase se desvanece. Os
opositores falarão de populismo e de autoritarismo, mas raramente
convencem os eleitores. É que, em democracia, o carisma permite níveis
de educação cívica democrática dificilmente atingíveis noutras
condições. A difícil química entre carisma e democracia aprofunda ambos,
sobretudo quando se traduz em medidas de redistribuição social da
riqueza. O problema do carisma é que termina com o líder. Para continuar
sem ele, a democracia precisa de ser reforçada por dois ingredientes
cuja química é igualmente difícil, sobretudo num imediato período
pós-carismático: a institucionalidade e a participação popular.
Ao gritar nas ruas de Caracas “Todos
somos Chávez!” o povo está lucidamente consciente de que Chávez houve um
só e que a revolução bolivariana vai ter inimigos internos e externos
suficientemente fortes para pôr em causa a intensa vivência democrática
que ele lhes proporcionou durante catorze anos. O Presidente Lula do
Brasil também foi um líder carismático. Depois dele, a Presidenta Dilma
aproveitou a forte institucionalidade do Estado e da democracia
brasileiras, mas tem tido dificuldade em complementá-la com a
participação popular. Na Venezuela, a força das instituições é muito
menor, ao passo que o impulso da participação é muito maior. É neste
contexto que devemos analisar o legado de Chávez e os desafios no
horizonte.
O legado de Chávez
Redistribuição da riqueza
Chávez, tal como outros
líderes latino-americanos, aproveitou o boom dos recursos naturais
(sobretudo petróleo) para realizar um programa sem precedentes de
políticas sociais, sobretudo nas áreas da educação, saúde, habitação e
infraestruturas que melhoraram substancialmente a vida da esmagadora
maioria da população. Alguns exemplos: educação obrigatória gratuita;
alfabetização de mais de um milhão e meio de pessoas, o que levou a
UNESCO a declarar a Venezuela como “território libre de analfabetismo”;
redução da pobreza extrema de 40% em 1996 para 7.3% hoje; redução da
mortalidade infantil de 25 por 1000 para 13 por mil no mesmo período;
restaurantes populares para os sectores de baixos recursos; aumento do
salário mínimo, hoje o salário mínimo regional mais alto, segundo la
OIT. A Venezuela saudita deu lugar à Venezuela bolivariana.
A integração regional
Chávez foi o artífice
incansável da integração do subcontinente latino-americano. Não se
tratou de um cálculo mesquinho de sobrevivência e de hegemonia. Chávez
acreditava como ninguém na ideia da Pátria Grande de Simón Bolívar. As
diferenças políticas substantivas entre os vários países eram vistas por
ele como discussões no seio de uma grande família. Logo que teve
oportunidade, procurou reatar os laços com o membro da família mais
renitente e mais pró-EUA, a Colômbia. Procurou que as trocas entre os
países latino-americanos fossem muito para além das trocas comerciais e
que estas se pautassem por uma lógica de solidariedade,
complementaridade económica e social e reciprocidade, e não por uma
lógica capitalista. A sua solidariedade com Cuba é bem conhecida, mas
foi igualmente decisiva com a Argentina, durante a crise da dívida
soberana em 2001-2002, e com os pequenos países das Caraíbas.
Foi um entusiasta de todas as formas de integração regional que ajudassem o continente a deixar de ser o backyard dos
EUA. Foi o impulsionador da ALBA (Alternativa Bolivariana para as
Américas), depois ALBA-TCP (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa
América- Tratado de Comércio dos Povos) como alternativa à ALCA (Área de
livre Comércio das Américas) promovida pelos EUA, mas também quis ser
membro do Mercosul. CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e
Caribenhos), UNASUL (União de Nações Sul-Americanas) são outras das
instituições de integração dos povos da América Latina e Caribe a que
Chávez deu o seu impulso.
Anti-imperialismo
Nos períodos mais
decisivos da sua governação (incluindo a sua resistência ao golpe de
Estado de que foi vítima em 2002) Chávez confrontou-se com o mais
agressivo unilateralismo dos EUA (George W. Bush) que teve o seu ponto
mais destrutivo na invasão do Iraque. Chávez tinha a convicção de que o
que se passava no Médio-Oriente viria um dia a passar-se na América
Latina se esta não se preparasse para essa eventualidade. Dai o seu
interesse na integração regional. Mas também estava convencido de que a
única maneira de travar os EUA seria alimentar o multilateralismo,
fortalecendo o que restava da Guerra Fria. Daí, a sua aproximação à
Rússia, China e Irão. Sabia que os EUA (com o apoio da União Europeia)
continuariam a “libertar” todos os países que pudessem contestar Israel
ou ser uma ameaça para o acesso ao petróleo. Daí, a “libertação” da
Líbia, seguida da Síria e, em futuro próximo, do Irão. Daí também o
“desinteresse” dos EUA e EU em “libertarem” o país governado pela mais
retrógrada ditadura, a Arábia Saudita.
O socialismo do século XXI
Chávez não conseguiu
construir o socialismo do século XXI a que chamou o socialismo
bolivariano. Qual seria o seu modelo de socialismo, sobretudo tendo em
vista que sempre mostrou uma reverência para com a experiência cubana
que muitos consideraram excessiva? Conforta-me saber que em várias
ocasiões Chávez tenha referido com aprovação a minha definição de
socialismo: “socialismo é a democracia sem fim”. É certo que eram
discursos, e as práticas seriam certamente bem mais difíceis e
complexas. Quis que o socialismo bolivariano fosse pacífico mas armado
para não lhe acontecer o mesmo que aconteceu a Salvador Allende. Travou o
projeto neoliberal e acabou com a ingerência do FMI na economia do
país; nacionalizou empresas, o que causou a ira dos investidores
estrangeiros que se vingaram com uma campanha impressionante de
demonização de Chávez, tanto na Europa (sobretudo em Espanha) como nos
EUA. Desarticulou o capitalismo que existia, mas não o substituiu. Daí,
as crises de abastecimento e de investimento, a inflação e a crescente
dependência dos rendimentos do petróleo. Polarizou a luta de classes e
pôs em guarda as velhas e as novas classes capitalistas, as quais
durante muito tempo tiveram quase o monopólio da comunicação social e
sempre mantiveram o controlo do capital financeiro. A polarização caiu
na rua e muitos consideraram que o grande aumento da criminalidade era
produto dela (dirão o mesmo do aumento da criminalidade em São Paulo ou
Joanesburgo?).
O Estado comunal
Chávez sabia que a
máquina do Estado construída pelas oligarquias que sempre dominaram o
país tudo faria para bloquear o novo processo revolucionário que, ao
contrário dos anteriores, nascia com a democracia e alimentava-se dela.
Procurou, por isso, criar estruturas paralelas caracterizadas pela
participação popular na gestão pública. Primeiro foram as misiones e gran misiones,
um extenso programa de políticas governamentais em diferentes sectores,
cada uma delas com um nome sugestivo (Por. ex., a Misíon Barrio Adentro
para oferecer serviços de saúde às classes populares), com participação
popular e a ajuda de Cuba. Depois, foi a institucionalização do poder
popular, um ordenamento do território paralelo ao existente (Estados e
municípios), tendo como célula básica a comuna, como princípio, a
propriedade social e como objetivo, a construção do socialismo. Ao
contrário de outras experiências latino-americanas que têm procurado
articular a democracia representativa com a democracia participativa (o
caso do orçamento participativo e dos conselhos populares setoriais), o
Estado comunal assume uma relação confrontacional entre as duas formas
de democracia. Esta será talvez a sua grande debilidade.
Os desafios para a Venezuela e o continente
A partir de agora começa a era
pós-Chávez. Haverá instabilidade política e económica? A revolução
bolivariana seguirá em frente? Será possível o chavismo sem Chávez?
Resistirá ao possível fortalecimento da oposição? Os desafios são
enormes. Eis alguns deles.
A união cívico-militar
Chávez
assentou o seu poder em duas bases: a adesão democrática das classes
populares e a união política entre o poder civil e as forças armadas.
Esta união foi sempre problemática no continente e, quando existiu, foi
quase sempre de orientação conservadora e mesmo ditatorial. Chávez, ele
próprio um militar, conseguiu uma união de sentido progressista que deu
estabilidade ao regime. Mas para isso teve de dar poder económico aos
militares o que, para além de poder ser uma fonte de corrupção, poderá
amanhã virar-se contra a revolução bolivariana ou, o que dá no mesmo,
subverter o seu espírito transformador e democrático.
O extractivismo
A revolução
bolivariana aprofundou a dependência do petróleo e dos recursos naturais
em geral, um fenómeno que longe de ser específico da Venezuela, está
hoje bem presente em outros países governados por governos que
consideramos progressistas, sejam eles o Brasil, a Argentina, o Equador
ou a Bolívia. A excessiva dependência dos recursos está a bloquear a
diversificação da economia, está a destruir o meio ambiente e,
sobretudo, está a constituir uma agressão constante às populações
indígenas e camponesas onde se encontram os recursos, poluindo as suas
águas, desrespeitando os seus direitos ancestrais, violando o direito
internacional que obriga à consulta das populações, expulsando-as das
suas terras, assassinando os seus líderes comunitários. Ainda na semana
passada assassinaram um grande líder indígena da Sierra de Perijá
(Venezuela), Sabino Romero, uma luta com que sou solidário há muitos
anos. Saberão os sucessores de Chávez enfrentar este problema?
O regime político
Mesmo quando sufragado
democraticamente, um regime político à medida de um líder carismático
tende a ser problemático para os seus sucessores. Os desafios são
enormes no caso da Venezuela. Por um lado, a debilidade geral das
instituições, por outro, a criação de uma institucionalidade paralela, o
Estado comunal, dominada pelo partido criado por Chávez, o PSUV
(Partido Socialista Unificado da Venezuela). Se a vertigem do partido
único se instaurar, será o fim da revolução bolivariana. O PSUV é um
agregado de várias tendências e a convivência entre elas tem sido
difícil. Desaparecida a figura agregadora de Chávez, é preciso encontrar
modos de expressar a diversidade interna. Só um exercício de profunda
democracia interna permitirá ao PSUV ser uma das expressões nacionais do
aprofundamento democrático que bloqueará o assalto das forças políticas
interessadas em destruir, ponto por ponto, tudo o que foi conquistado
pelas classes populares nestes anos. Se a corrupção não for controlada e
se as diferenças forem reprimidas por declarações de que todos são
chavistas e de que cada um é mais chavista do que o outro, estará aberto
o caminho para os inimigos da revolução. Uma coisa é certa: se há que
seguir o exemplo de Chávez, então é crucial que não se reprima a
crítica. É necessário abandonar de vez o autoritarismo que tem
caracterizado largos sectores da esquerda latino-americana.
O grande desafio das forças
progressistas no continente é saber distinguir entre o estilo
polemizante de Chávez, certamente controverso, e o sentido político
substantivo da sua governação, inequivocamente a favor das classes
populares e de uma integração solidária do subcontinente. As forças
conservadoras tudo farão para os confundir. Chávez contribuiu
decisivamente para consolidar a democracia no imaginário social.
Consolidou-a onde ela é mais difícil de ser traída, no coração das
classes populares. E onde também a traição é mais perigosa. Alguém
imagina as classes populares de tantos outros países do mundo verter
pela morte de um líder político democrático as lágrimas amargas com que
os venezuelanos inundam as televisões do mundo? Este é um património
precioso tanto para os venezuelanos como para os latino-americanos.
Seria um crime desperdiçá-lo.
Coimbra, 6 de Março de 2013