quarta-feira, fevereiro 16, 2011

Avaliação desgovernada ou o desgoverno da avaliação

A competição entrou nas escolas. Os professores brigam para conseguirem subir na carreira. Colegas avaliam colegas a competir pela mesma vaga. Quem dá aulas de História avalia quem dá aulas de Filosofia. Licenciados em Inglês avaliam licenciados em Francês. Directores com formação em Matemática ou em Biologia obrigados a avaliar coordenadores de Geografia, de Português e quem mais tiver de ser. Avaliadores submersos em fichas de avaliação, relatórios de auto-avaliação, aulas assistidas, reuniões ou entrevistas com os que se candidatam às notas mais altas - Muito Bom e Excelente. Avaliados ressentidos e avaliadores atormentados.


Para quem pensava que a avaliação dos docentes é uma questão que ficou arrumada há um ano quando os sindicatos e a ministra Isabel Alçada assinaram um memorando de entendimento, o engano não podia ser maior. A seis meses de terminar o ciclo avaliativo, há cada vez mais professores a recusar o novo modelo. Há cada vez mais manifestos, tomadas de posição, protestos colectivos que chegam ao Ministério da Educação ou às direcções dos agrupamentos escolares.

Na Escola Secundária de Barcelos, o processo está suspenso e só será retomado depois de todas as dúvidas serem esclarecidas em despachos, circulares ou ofícios. Tanto faz. Desde que as confusões acabem. No Agrupamento de Escolas do Atlântico, em Viana do Castelo, os professores pedem ao ministério para voltar a dialogar sobre um modelo que já provocou um "clima de competição desgovernada". Esse mesmo "clima de competição desenfreada" que acabou com "quaisquer valores de partilha" ou de cooperação entre colegas, avisam os professores do departamento do 1.o ciclo do Agrupamento de Escolas de Gondifelos, em Famalicão.

A tomada de posição na Escola Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, surgiu porque o novo modelo "permite subjectividade e a arbitrariedade". Na Escola Secundária Infanta D. Maria, em Coimbra, 95 num total de 96 professores concluíram que o modelo é excessivamente complexo, burocrático e, por isso, exigem com urgência uma "discussão séria e alargada" sobre o actual sistema.

Causas individuais Há tomadas de posição colectiva e, depois, ainda há os professores que assumem causas por conta própria. Maria José Simas, professora de Inglês e de Alemão na Escola Secundária D. João II, em Setúbal, pediu ao Ministério da Educação para deixar de ser avaliadora dos colegas. Jaime Pinho, professor de História, está na mesma escola e fez o mesmo. José Carvalho, dá aulas de Educação Física na Secundária de São Pedro, em Vila Real, e também pediu a escusa do cargo de relator (avaliador). Aguardam uma resposta mas, entretanto, desistiram de competir pelas classificações mais elevadas. Vão ter de esperar mais quatro anos para voltarem a ter nova oportunidade de subir na carreira. É o custo que dizem não se importar de pagar. Preferem isso a perder o "brio na profissão", a "sanidade" ou o tempo que dizem não estar a ser usado para preparar as aulas.

José Carvalho não teve formação específica para ser avaliador e está convencido de que a sua licenciatura serve apenas para avaliar os seus alunos. "Não me sinto com competência para dizer que um professor é melhor do que o outro só porque estou há mais anos nesta profissão." A antiguidade é um posto neste modelo de avaliação e foi esse o critério para ser nomeado docente-relator. Mesmo que os colegas, embora mais novos, tenham qualificações superiores: "Teria de avaliar pessoas com mestrados e com doutoramentos, formação que não tenho."

E nem tem tempo, avisa o professor de Educação Física. Uma hora por semana é o período que lhe foi imposto para avaliar três colegas. Gasta mais do que isso. São dezenas de fichas de avaliação para preencher, relatórios para apreciar, entrevistas com os avaliadores, reuniões com júris "vão muito além dos 60 minutos por semana". E tudo o resto fica comprometido: "Preparar aulas, desenvolver actividades com os alunos, participar em reuniões de planeamento são algumas tarefas que ficam incompletas ou são feitas a correr."

Maria José Simas usa os mesmos argumentos para recusar avaliar os colegas: "Apesar de ter sido formadora e orientadora de estágios de professores em início de carreira, não consigo fazer o mesmo para os que estão ao mesmo nível que eu ou acima." E como avaliar um colega, assistindo a duas ou três aulas por ano? É a pergunta sem resposta de uma boa parte dos professores. Quem quer ter notas de mérito ou transitar para o 5.o ou 7.o escalão tem de pedir aos outros professores para assistirem às suas aulas - duas no mínimo ou três no máximo terão de ser suficientes para os avaliadores concluírem que as aulas do avaliado são científica e pedagogicamente adequadas.

O avaliador ainda tem de apreciar relatórios de auto-avaliação e preencher fichas com dezenas de páginas e dezenas de "indicadores" que se multiplicam por "domínios", subdividem-se em "níveis" ou se reproduzem em "dimensões", em conceitos ou em temas associados. "O grande problema são os critérios subjectivos que não sei aplicar", reconhece Maria José Simas. Quantificar a contribuição do avaliado para o sucesso escolar ou determinar o seu maior ou menor envolvimento com a comunidade educativa são alguns exemplos: "Não tenho dados estatísticos ou sociológicos para concluir que um professor está mais envolvido do que outro na comunidade escolar nem sequer descobrir qual deles contribuiu mais ou menos para reduzir o insucesso ou absentismo."

Ter de competir com os colegas foi a gota de água: "Na minha escola, somos 120 professores e todos queremos as mesmas cinco ou seis vagas." Ou menos, não se sabe, já que o ministério terá ainda de definir a quota-parte a que cada escola ou agrupamento tem direito. Por tudo isso, e ainda para "não perder a sanidade", a professora de Inglês saiu a meio do jogo. E voltou a ter tempo para se dedicar às aulas.

Porque é disso que se trata, esclarece Jaime Pinho: "O modelo colocou-me num dilema." Ou escolhe os seus 170 alunos ou entrega-se a "um monstro burocrático insaciável." Pondo as coisas nesse patamar, é fácil optar: "Desisti de tentar ser um Excelente ou Muito Bom professor." A partir de agora e, durante os próximos quatro anos, terá de se contentar em ser apenas um Bom professor.

Maria José Simas ou José Carvalho recusam avaliar os colegas por não terem "competências" Há professores a desistirem das notas mais altas para escapar ao jogo da competição Falta de formação dos avaliadores ou modelo complexo e burocrático são as críticas a este modelo
 
Cátia Catulo in Jornal i
In MEP

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