domingo, maio 30, 2010

Portugal profundo e em crise

A taxa de desemprego é mais de 20 por cento. Viagem a Castelo de Paiva, Mesão Frio e Baião, pelas tascas e mercearias.
Por: Bruno Contreiras Mateus, Correio da Manhã
Segunda-feira, 15 horas: o calor vai alinhando os desempregados na esplanada. Todas as terras têm um Café Central – e Vila Marim, Mesão Frio, não é excepção. Aqui cheira a Douro, o rio corre no vale que se afunda na paisagem. Os montes estão verdes e encarreirados de vinhas.
"Estamos todos desempregados, senão não vínhamos para aqui", insiste Margarida Flor, 45 anos, num tom de voz entre a ironia e a expressão da raiva de uma espera ‘ad aeternum’. Estão ali cinco rebatidos à sombra. O mais novo foi chamado pela buzina de uma carrinha de caixa aberta e regressou passados 20 minutos já ao volante. Vestido estilo praia – calções claros e chinelas, óculos de sol, barba desfeita –, Marcelo Ribeiro, 26, foi (num biscate rápido) montar um portão. "O meu pai é serralheiro e, quando precisa, eu ajudo-o", argumenta. Mesão Frio bateu o recorde de desemprego: 25,8% contra 10,6% da média nacional.
O CAFÉ DA (DES)ESPERA
Apenas duas chávenas de café vazias e uma água sobre as mesas. O jornal roda lentamente pelos presentes. De repente, o silêncio campestre dá lugar à revolta. Isabel Rosende, 49 anos, abre as hostes ao diálogo: "Eu trabalhava no campo, na vinha, com enxada na mão. E não me envergonho". Apenas com a 4ª classe e nascida de uma família pobre desde sempre, perdeu o chão da sua terra quando os campos deixaram de lhe dar o ganha-pão. Voltou-se então para França – o trabalho sazonal na agricultura sempre salvou muitas casas da miséria. Até agora, porque a crise não é produto nacional – é o que se pode chamar um factor global.
"A agricultura está mal", resmunga Isabel. Andava ela na apanha do morango, mas o desgaste das rótulas nos dois joelhos atirou-a para o fundo de desemprego e o governo da sua casa, sendo solteira, lá se faz com módicos 400 euros. Uma boa parte vai para a renda e com quaisquer 50 ou 60 euros enche a despensa. Sopa e arroz ainda vai havendo; carne é que nem sempre. Todos vão tendo um pedaço de terra para colher as batatas e as hortaliças da refeição, acrescenta Ana Maria Marques, um ano mais nova do que Isabel. "E depois partilhamos. A quem tiver a mais, não custa repartir".
No vidro do café está um cartaz com a mensagem "O futuro começa aqui; Escola Profissional da Régua". É o que basta para que Ana Maria se recorde do curso de Cozinha em que andou, "iludida", a tirar até Abril de 2009, pago pelo Centro de Emprego. Diz ela que de lá para cá nada mudou em sua casa: emprego, nem vê-lo, mas, felizmente, o marido mantém-se funcionário da Alfândega.
A conversa deixa Margarida Flor impaciente. Levanta-se e exclama: "Veja lá que a crise é tão grande que eu abro sepulturas para os mortos!" De seguida, bate com a mão no peito e acrescenta: "Ao que cheguei para sobreviver." Por 100 euros. Relança a ironia agora para dizer que já "nem mortos há". Sentado ao lado de Isabel, Guilherme Ribeiro, 38, que foi condutor de gruas na obra do Museu do Douro, riposta: "Eu não me importava de andar aí a cavar valetas". Há um ano e meio que recebe o subsídio de desemprego de 320 euros e, hoje, ainda solteiro e a viver na casa dos pais, como se tivesse acordado de um pesadelo, anuncia que a partir de Junho já não tem direito a ser pago por esta má sorte. "Se não aparecer mais nada, vou para França" – avisa – "mas não me importo: ganha-se bem".
Julho e Agosto ainda vão sendo meses altos em terras francesas e espanholas, onde se aufere até dois mil euros na lavoura.
FIADO É MAIS BARATO
Descendo pelo socalco da paisagem, na povoação de Rede, Vítor Manuel Monteiro, dono do Café Conforto – junto à linha de caminhos-de-ferro – desfia o rosário de quem perdeu metade do negócio. "Há dois ou três anos paravam aqui, a caminho de Espanha, 15 a 20 carrinhas de nove lugares. Hoje, param cinco pessoas que viajam numa única carrinha".
Cruzando a passagem-de-nível avista-se um aviso na montra do minimercado Fonseca que já vai sendo moda: "Por motivos financeiros, pede-se aos clientes que devem há mais de 60 dias, o favor de se aproximarem para liquidarem as dívidas. Caso não cumpram as suas obrigações, serão colocados os seus nomes na montra deste estabelecimento". Ali como na maioria das aldeias, metade da loja é mercearia e a outra metade é café. O mesmo pode significar que a lista de calotes junta o pacote de leite ao maço de tabaco ou à cerveja. "Quando não têm dinheiro vêm ter connosco, pedem-nos as coisas, deixam-nos pô-las em cima do balcão e depois dizem que é para apontar na conta" – relata Elisabete Gomes, 32 anos. "Nós dizemos-lhes que precisamos do dinheiro para pagarmos aos fornecedores. Mas é o mesmo que nada. Temos três mil euros em dívidas que são para esquecer" – lamenta.
Vestida de luto, Donzília Ribeiro, 57 anos, leva na mão 100 gramas de fiambre fatiado. O marido, Fernando da Fonseca Pereira, 61, faz questão de reforçar que pagaram a compra. Também ele não estaria ali, no pico da tarde, se tivesse um emprego. No meio das vassouras penduradas e de sacos de carvão empilhados assume que está pronto para trabalhar nas obras. Os últimos seis anos passou-os na construção civil, em França. Só que a doença da sogra e de um cunhado fizeram o casal voltar. Deixaram lá (no país das oportunidades) os dois filhos, de 30 e 36 anos. Entretanto, os dois familiares da mulher morreram e eles ficaram a braços com outro irmão que está a cegar.
Como nem todos os dias podem beber café, enfiam-se os três no velhinho Renault Clio e vão para casa, em Vale Côvo, a três minutos dali. Donzília tem a casa dividida por duas partes: numa é a sala e os quartos, divididos por paredes cartonadas de dois ou três centímetros de espessura; e, saindo para a rua, entra-se noutra com a cozinha e uma sala de refeições. Junto ao fogão, onde repousa a panela do cozido à portuguesa do dia anterior, domingo, fica o armário das mercearias que não terá mais do que atum, espaguete e uns pacotes semiabertos de sal, açúcar e farinha. Ela observa os tachos e emenda: "cozido não, meio cozido. Tem as couves, a orelheira e uma chouriça; agora, carne de vaca, nem vê-la." Enquanto ela se dedica à casa, o marido desempregado ocupa-se numa arrecadação exígua agarrado a velhos instrumentos da lavoura que transforma em peças de decoração.
A MORTE DA INDÚSTRIA
Baião tem perto de cinco vezes mais população activa do que Mesão Frio. E aqui, o desemprego, atinge os 23,7%. Há quatro anos desempregada, Alice Pinto, 28 anos, passou pelo café A Ceifeira, em Valadares, antes de levar o carro à oficina. Como o pai trabalha na construção civil – embora "esteja na corda bamba" – é a filha que tem tempo para tratar do Seat Ibiza. "Eu era auxiliar de acção educativa num infantário em Baião mas, quando mudámos de presidente da câmara, já não renovei o contrato. Eu e mais 20 colegas". Há mais de um ano que lá trabalhava e este era o emprego que desejava. Ponderada a falar, Alice acrescenta que lá vai trabalhando no quintal, com a mãe.
No minimercado Celeiro, Rosa Gaspar revolta-se com os fiados. "É que se tiverem de levar, levam tudo, não se ficam pelo essencial". Pelo mesmo, Maria de Jesus Pinto, do supermercado Central, em Baião, não escolhe palavras para adjectivar os caloteiros: "Por 7,5 euros perde-se dinheiro e o cliente, por menos até. Depois, fogem de nós. E é vê-los nos cafés a tomar o pequeno-almoço. Essas pessoas nem faltam sequer aos cabeleireiros". Uns devem-lhe 750 euros. E outros até a maltratam. "Sabe o que uma me disse? Até tenho vergonha: ‘queres que te pague? Só se eu for fazer coisas com o teu marido’".
A Taberna Gomes, à entrada de Baião, já teve quatro empregados. Hoje, tem uma. Aos 75 anos, João Gomes Ferreira deve ser o filho da terra mais velho com sotaque brasileiro. Tinha 15 anos quando trocou a lavoura por um futuro incerto do lado de lá do Atlântico. "Fui trabalhar lá por minha conta a vender pão na rua – dava dinheiro. Depois meti-me em camiões de fruta e comprei um restaurante. Estive lá 40 anos". Regressou há 30 anos e tornou-se empresário de sucesso em Baião, até que perdeu o fôlego e alugou todas as lojas. Ficou com a taberna onde desempregados, reformados e homens das obras jogam às cartas.
De carro, chegaram da aldeia do Grilo quatro amigas desempregadas. Quando vão à vila, o principal propósito é assinar a folha de desemprego no posto de atendimento. Duas delas são familiares e vítimas do encerramento de parte da indústria têxtil na região. Maria Alice de Azevedo, 32 anos, recebia 400 euros como operária numa máquina que costurava tiras em batas. O subsídio dela são 420 euros, mas já há dois anos que perdeu o emprego que tinha há mais de oito.
A sobrinha, Maria Helena Oliveira, 30, teve mais azar porque tanto ela como o marido trabalhavam na mesma fábrica que faliu. Ficaram a braços com os dois filhos gémeos para cuidar e a casa para pagar. "Fomos vivendo consoante a gente podia", diz ela, já rotinada neste tipo de resposta. "Olhe, comíamos sopa e massa. Depois, temos criação de frangos, coelhos, patos. Cultivamos batatas, cebolas, feijão. É que mesmo que quiséssemos comprar tudo isto, não dava. O meu medo maior foi sempre o de perder a casa. Mas claro que primeiro estão os meus filhos.
De caminho para Castelo de Paiva, com taxa de desemprego de 20,7%, ressaltam à memória três acontecimentos marcantes dos últimos 16 anos: em 1994, o encerramento das Minas do Pejão, em 2001 a queda da ponte de Entre-os-Rios; e, recentemente, a batalha dos funcionários das empresas de calçado Glovar e Ilpe Ibéria pela manutenção dos postos de trabalho lembra o fecho da C. & J. Clarks.
Maria da Conceição Silva, de 42 anos, vive o drama do marido, que está em lay-off na Ilpe, desde Janeiro. Ela é caixa do supermercado Carvalho & Silva e já se habituou a ver outras famílias a poupar na alimentação para sustentarem a família. As pessoas já não compram tantos sumos e outras bebidas, cortaram no bacalhau, polvo e camarão. Só levam os detergentes mais baratos e procuram todas as promoções. Maria da Conceição sabe de cor o drama destas famílias porque em sua casa já se vive um pouco de cinto apertado.
O filho, de 21 anos, ficou desempregado e sem dinheiro para pagar a prestação do carro. "Esta semana partiu para Espanha, à sorte. Ele tem para lá um amigo e vai tentar encontrar trabalho como soldador" – conta ela, com a voz embargada e o olhar entristecido por ver o filho partir em desespero. "A minha filha, de 15 anos, pede-me umas calças porque as dela já estão rasgadas. E eu tenho que lhe dizer que este mês não posso. Talvez no próximo. Eu penso assim porque nunca quis ficar a dever a ninguém. Temos sempre que pensar que vamos cozinhar o mais barato e agora até conseguimos roupa a dois euros".
FUTURO SEM ESPERANÇA
No café da loja ao lado do supermercado, sentado numa mesa a ler o jornal desportivo e a beber uma cerveja, António Cruz, 27 anos, sente-se triste. A tristeza rouba-lhe as palavras, até a vontade de falar. "Revolta-me o País estar desta maneira, sem ideias para avançar", vai dizendo a custo. "Tenho de andar à procura de trabalho para sobreviver. Mas não tenho força, não tenho reacção. Passo o dia a dormir ou venho ao café beber uma cerveja. Não dá para mais, não tenho dinheiro". António está depressivo. Vive uma fase complicada pela qual todos os desempregados passam: é o choque de ter ficado sem emprego há menos de uma semana. Mais do que isso, está em pânico por não saber como pagar a prestação do carro e as despesas da casa. "Sinto-me frágil. Não quero que me vejam assim", lamenta.
O olhar cabisbaixo não desarma a mágoa. António trabalhou sete meses em Espanha, na construção civil, por 1050 euros. E agora não pode gastar mais do que 5 euros por dia. Difícil para quem foi obrigado a reduzir no tabaco. António mudou-se para casa dos pais da namorada. Dividindo por todos, as despesas sempre ficam mais em conta. Só que isso também o fere no seu orgulho.
A MEMÓRIA DAS MINAS
A paisagem é árida. A vocação de Castelo de Paiva nunca foi a agricultura – apesar do excelente vinho verde – mas sim a indústria do calçado, que tem vindo a desaparecer. Os rios serpenteiam pelos vales. E é quase inevitável, a caminho da adega A Ramadinha, não parar para observar um pescador. Um único pescador, no Douro, ao Sol. José Alberto está alapado nas rochas, de colete verde, chapéu de pescador, com o balde ao lado ainda vazio de pescado. O anzol espera a primeira picada. Como não podia deixar de ser para um homem da sua geração – com 59 anos –, foi mineiro. Trabalhou no fundo da mina durante oito anos, mas por causa da bronquite veio à superfície ocupar-se de outras tarefas no Pejão por mais 12 anos.
"Tenho saudades de andar lá dentro e também daquele convívio. Era como trabalhar numa fábrica". Na altura o desemprego ainda lhe rendeu uma indemnização que o ajudou a pagar por completo a casa. E por isso, hoje, passados tantos anos, ter ficado novamente sem emprego já não lhe rouba o sono. Até Setembro de 2009 foi jardineiro. Sempre tem a ajuda à mesa dos produtos da horta e dos frangos que cria. "E pesco tainhas e como-as. Aqui a tainha é boa" – vai dizendo com a sua pronuncia paivense.
Passando uma ponte que cruza o rio, chega-se à adega A Ramadinha, em Pedorico. A esplanada enche-se de velhos que conversam e bebem uma cerveja gelada. Debaixo de uma sombra, Daniel Duarte faz companhia ao amigo, emigrante na Suíça, que vai petiscando ao sabor do vinho.
Daniel tem apenas 23 anos e passa os dias em casa, no computador a ver carros, por exemplo, ou no café. Gostava de ser camionista, mas não tem carta de pesados e ainda não pensou em tirá-la. Está desempregado, mas não tem vontade de procurar trabalho em Portugal. "Lá fora é outra vida, outra liberdade", justifica. O amigo vai acenando afirmativamente com a cabeça. Daniel esteve em Espanha a trabalhar nas obras e a experiência só o leva a querer repetir. Por agora, os 460 euros do Fundo de Desemprego vão estagnando as águas da procura de melhor vida. Vive em casa dos pais e apesar de ter que se privar de sair tanto quanto gostaria com os amigos, vai aguentando. "O mesmo empreiteiro para quem trabalhei já me telefonou para me chamar, mas não me interessava o ordenado que me oferecia. É bem menos do que o que ganhava antes".
O Interior Norte do País ressente-se com a crise. As indústrias são quase inexistentes nestes três concelhos mais afectados pelo desemprego. E a agricultura é apenas uma solução nos socalcos do Douro. De resto, toda a gente tem um pedaço de terra para manter as reservas alimentares em casa. As mulheres são as mais afectadas pela falta de emprego. Vão apenas debruando esta realidade com trabalho sazonal no estrangeiro. Os homens, ocupados na construção civil, abandonam o País. Às 15 horas os cafés e as mercearias têm gente, desempregada, que já esgotou este País e os outros.  
RADIOGRAFIA DO DESEMPREGO COM TAXA ACIMA DOS 20% CENTRA-SE SÓ NO NORTE
Há quatro concelhos com desemprego acima dos 20%, sendo 10,6% a média nacional, segundo o Instituto Português de Estatística. Mesão Frio bateu o recorde com 25,8%; segue-se Baião, com 23,7%; no litoral, Espinho com 22,8%; e, voltando ao Interior Norte, Castelo de Paiva com 20,7%. A taxa de desemprego nunca esteve tão alta. Há 35 concelhos acima dos 15% e 22,7% dos desempregados são jovens.
O presidente da Câmara de Mesão Frio, Alberto Monteiro Pereira, afirma que "a grande causa deste disparo na taxa de desemprego neste concelho advém do facto de, nos últimos três anos, ter-se promovido cursos de Educação e Formação de Adultos, sendo uma das condições para o acesso a inscrição no Centro de Emprego". Perspectiva que a vereadora Ivone Abreu, da Câmara de Baião, corrobora. Tal como o autarca de Castelo de Paiva, Gonçalo Rocha, que lamenta ainda o fecho da indústria de calçado e os fracos acessos à sua região.
A TRADIÇÃO DE PÔR NA CONTA
Vítor Manuel Monteiro, do Café Conforto, em Mesão Frio, é peremptório em afirmar que o negócio já perdeu 50% com a crise de desemprego que assola o País. Esta é a opinião generalizada um pouco por todos os cafés das regiões mais afectadas por este flagelo. Pior são os calotes nas mercearias.
A maioria dos merceeiros afirma que as pessoas, apesar da crise, não se privam de comprar muitos produtos supérfluos porque ainda têm o facilitismo de mandarem pôr na conta. E quando pagam? Muitos não fazem qualquer previsão. É crise a agravar a crise. 
Comentário:
Importante artigo de Bruno Mateus. Este é o retrato real do Portugal socrático que nos desgoverna há  cerca de 4 anos - até quando? Povo, porque tardas tanto em atirar esta escumalha para o caixote do lixo?

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