sexta-feira, setembro 03, 2010

Massacre do Cemitério de Père-Lachaise

pintura de Henri-Félix-Emmanuel Philippoteaux 1871



CRÓNICAS SOBRE PARIS 
No Père-Lachaise



Na visita a Paris tinha uma obsessão que me perseguia cada dia que passava - ir ao cemitério do Père-Lachaise, que ficava fora dos limites da cidade, a leste. E não descansei, enquanto não visitei o cemitério, o maior de Paris e um dos mais famosos do mundo (43 hectares e aberto em 1804). Neste cemitério estão sepultados celebridades como o escritor Honoré de Balzac, o compositor Frédéric Chopin, o cantor Jim Morrison, vocalista dos Doors, e o actor Yves Montand. Outros nomes sonantes também aqui se encontram - o escritor Marcel Proust, as actrizes Simone Signoret e Sara Bernhardt, o irreverente dramaturgo irlandês Óscar Wilde, o revolucionário François Raspail, Edith Piaf, a maior cantora popular de França no século XX, e Allan Kardec, o fundador do movimento espiritualista Kardecismo, no século XIX. Não foi para ver os seus túmulos que ali entrei, pois o que eu queria ver mesmo era o Muro dos Federados, a parede onde os últimos rebeldes communards da célebre e heróica Comuna de Paris foram fuzilados pelas forças governamentais, em Maio de 1871. Ainda hoje trata-se de um local de peregrinação para os simpatizantes de esquerda e eu não podia falhar. A subir uma rua empedrada do enorme cemitério e debaixo de um calor sufocante lá ia eu.
Mas afinal o que foi a Comuna de Paris proclamada no dia 18 de Março de 1871?
Em semanas, foram introduzidas mais reformas do que por todos os governos nos dois séculos anteriores:

  1. O trabalho nocturno foi abolido;
  2. As oficinas que estavam fechadas foram reabertas para que cooperativas fossem instaladas;
  3. Residências vazias foram ocupadas;
  4. Em cada residência oficial foi instalado um comité para organizar a sua ocupação;
  5. Todas os descontos nos salários foram abolidos;
  6. A jornada de trabalho foi reduzida, e chegou-se a propor a jornada de oito horas;
  7. Os sindicatos foram legalizados;
  8. Instituiu-se a igualdade entre os sexos;
  9. Projectou-se a autogestão das fábricas;
  10. O monopólio da lei pelos advogados, o juramento judicial e os honorários foram abolidos;
  11. Testamentos, adopções e a contratação de advogados tornaram-se gratuitos;
  12. O casamento tornou-se gratuito e simplificado;
  13. A pena de morte foi abolida;
  14. O cargo de juiz tornou-se electivo;
  15. O calendário revolucionário foi novamente adoptado;
  16. O Estado e a Igreja foram separados; a Igreja deixou de ser subvencionada pelo Estado;
  17. A educação tornou-se gratuita, secular e compulsória. Escolas nocturnas foram criadas e todas as escolas passaram a ser de sexo misto;
  18. Sociedades de discussão foram adoptadas nas Igrejas;
  19. A Igreja de Brea, erguida em memória de um dos homens envolvidos na repressão da Revolução de 1848 foi demolida. O confessionário de Luís XVI e a coluna Vendôme também foram demolidos;
  20. A Bandeira Vermelha foi adoptada como símbolo da Unidade Federal da Humanidade;
  21. O internacionalismo foi posto em prática: o facto de se ser estrangeiro tornou-se irrelevante. Os integrantes da Comuna incluíam belgas, italianos, polacos, húngaros;
  22. Instituiu-se um escritório central de imprensa;
  23. Emitiu-se um apelo à Associação Internacional dos Trabalhadores;
  24. O serviço militar obrigatório e o exército regular foram abolidos;
  25. Todas as finanças foram reorganizadas, incluindo os correios, a assistência pública e os telégrafos;
  26. Havia um plano para a rotatividade de trabalhadores;
  27. Considerou-se instituir uma Escola Nacional de Serviço Público, da qual a actual ENA francesa é uma cópia;
  28. Os artistas passaram a gerir os teatros e editoras;
  29. O salário dos professores foi duplicado.
A semana de 22 a 28 de Maio de 1871 ficou conhecida como a Semana Sangrenta. Nestes sete dias as tropas de Versalhes sob o comando do carrasco Thiers, representante da grande burguesia, varreram a cidade, queimando, destruindo, matando, fuzilando prisioneiros e reféns, gente simples do povo de Paris, homens, mulheres e crianças. Lutou-se rua a rua, de barricada a barricada, de casa a casa. Um a um foram caindo os redutos federados, Montmartre, Hôtel-de Ville, Panthéon, Praça Vendôme, Bastilha, defendidos por soldados da Guarda Nacional e civis armados. A cidade ficou em chamas e na noite do 27, Sábado, 157 federados empurrados contra o muro do cemitério foram fuzilados pelos versalheses, depois de uma luta feroz debaixo de chuva, de túmulo a túmulo, a revólver, baioneta e faca. Houve fuzilamentos em massa de presos por toda a cidade, incluindo mulheres e crianças. Na segunda-feira, o Père-Lachaise recebeu na vala comum os cadáveres de 1 800 federados fuzilados na véspera na prisão de La Roquette. Foi a cota do Père-Lachaise dos cerca de 35 mil federados mortos na guerra civil. Do lado de Versalhes, morreram cerca de mil soldados.
Os communards apenas pretendiam uma sociedade mais justa e livre. Por isso morreram da forma mais atroz, mas também heróica. Às mãos da burguesia raivosa e contra-revolucionária. Apesar de derrotada, novas Comunas à luz dos novos tempos despontarão, desta vez vitoriosas. Pela Europa e pelo mundo, incluindo também em Portugal, sócretino, cavasqueiro, ou seja lá o que for. A Humanidade não deixará de lutar, sempre, por uma sociedade mais justa, livre e solidária.
Assim se explica a minha visita ao cemitério do Père-Lachaise, em Paris - prestar tributo e homenagem aos heróicos communards, que não tombaram em vão.
João Vasconcelos

0 comentários: