“A zona euro está um despenhadeiro”
Em entrevista ao jornal Washington Post, o economista norte-americano James K. Galbraith critica a receita ortodoxa que recomenda o corte de gastos públicos como maneira de enfrentar a crise. Para ele, o que está a acontecer na Europa é desolador.
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Em entrevista ao jornal Washington Post, o economista norte-americano James K. Galbraith critica a receita ortodoxa que recomenda o corte de gastos públicos como maneira de enfrentar a crise. Para ele, o que está a acontecer na Europa é desolador.
“A receita que se sugere agora, de que é possível cortar o gasto público sem cortar a actividade económica, é completamente falaciosa. Isso está a ocorrer agora na Europa e é desolador. Exige-se que os gregos cortem 10% do gasto público em poucos anos. E supõe-se que isso não afectará o PIB. É evidente que vai afectar. E afectará de uma maneira tal que eles não terão os ingressos fiscais necessários para financiar sequer um nível mais baixo de gasto público. E estão a obrigar a Espanha a fazer o mesmo. A zona do euro caminha para o abismo.”
Um dos principais economistas de nosso tempo destrói sem contemplações o mito do défice público e zomba da incompetência dos seus colegas. Ezra Klein entrevistou James Galbraith para o jornal Washington Post. Reproduzimos a entrevista abaixo:
Acredita que o perigo representado pelo défice a longo prazo [nos EUA] está a ser sobrestimado pela maioria dos economistas e jornalistas económicos?
Não. O que eu acredito é que o perigo é zero, e não que esteja a ser sobrestimado. Essa questão está muito mal posta.
Porquê?
Qual é a natureza do perigo [nos EUA]? A única resposta possível é que este défice maior iria causar um aumento das taxas de juro. Bem, se os mercados achassem que isso representa um risco sério, as taxas de juro sobre os bónus do Tesouro a 20 anos não seriam de 4% e começariam a mudar agora mesmo. Se os mercados pensassem que as taxas de juro serão forçadas a subir por problemas de financiamento daqui a dez anos, isso reflectir-se-ia já num aumento dos juros para os bónus de 20 anos. Ora o que tem ocorrido, ao invés disso, é que os juros têm baixado diante do início da crise europeia.
Assim, há duas possibilidades. Uma é que a teoria esteja equivocada. A outra é que o mercado é irracional. E se o mercado não é racional, não faz sentido desenhar uma política para adequar-se aos mercados, porque não se pode adequar a uma entidade irracional.
Mas então por que a maioria dos seus colegas está tão preocupada com isso?
Aprofundemos um pouco os prognósticos do Gabinete Orçamentário do Congresso. Trata-se de um conjunto de projecções. Uma delas é que a economia voltará a níveis normais de elevado emprego com baixa inflação nos próximos dez anos. Se é verdade, seriam notícias muito boas. Algumas linhas abaixo, vemos que também prevêem taxas de juro de curto prazo em alta até 5%.
O que gera esses prognósticos de enormes défices futuros é esta combinação entre taxas de juro altas no curto prazo e inflação baixa. E esses prognósticos baseiam-se na suposição de que os custos da assistência de saúde vão crescer para sempre a uma taxa maior do que qualquer outra coisa, e também na suposição de que o pagamento dos juros da dívida representarão algo entre 20 e 25% do PIB.
Neste ponto, a coisa torna-se completamente incoerente. Não se pode passar cheques a 20% a ninguém sem que o dinheiro entre na economia e aumente o emprego e a inflação. E se isso ocorre, então a proporção da dívida em relação ao PIB tem de decrescer, porque a inflação afecta o volume da nossa dívida. Todas essas cifras hão de se agrupar numa história coerente, e os prognósticos do Gabinete Orçamentário do Congresso não a oferecem, de maneira que qualquer coisa que se diga, baseada neles é, falando estritamente, sem sentido.
Não poderia haver um meio termo entre o levantamento do Gabinete Orçamentário do Congresso e a ideia de que a dívida não representa problema algum? Parece claro, por exemplo, que os custos da assistência de saúde continuarão a crescer mais rapidamente que os outros sectores da economia.
Não. Não é razoável. A parcela dos custos da assistência de saúde cresceria, como parte do PIB total, e a inflação cresceria, acompanhando a mesma proporção. E se a assistência de saúde se tornar realmente tão cara e acabarmos por pagar 30% do PIB, enquanto o resto do mundo paga 12%, poderíamos comprar Paris e todos os seus médicos e trasladar os nossos idosos para lá.
Mas deixando de lado a inflação, a diferença entre receitas e despesas não terá outros efeitos perversos?
O facto de não termos financiado previamente o nosso orçamento militar trouxe consigo alguma consequência terrível? Não. Há uma só autoridade orçamentária e creditícia, e a única coisa que importa é o que esta autoridade paga. Suponha que eu seja o governo federal e queira pagar a você, Ezra Klein, mil milhões de dólares para construir um porta-aviões. O que faço é transferir dinheiro para a sua conta bancária. O Banco Central preocupar-se-á com isso? Terá de se preocupar com o IRS? Para gastar, o governo não precisa de dinheiro: isso é tão óbvio como que uma pista de bowling não descarrila.
O que preocupa as pessoas é se o governo federal não for capaz de vender títulos da dívida. Mas o governo federal não pode nunca ter problemas para vender a sua dívida. Ao contrário. O gasto público é o que cria procura bancária de títulos da dívida, porque os bancos querem rendimentos maiores para o dinheiro que o governo põe na economia. O meu pai dizia que o processo é tão subtil que a mente se bloqueia perante a sua simplicidade.
Que implicações políticas isso tem?
Que deveríamos concentrar-nos nos problemas reais e não nos fictícios. Temos problemas graves. O desemprego está em 10%. Muito melhor seria se nos dispuséssemos à tarefa de desenvolver políticas de emprego. E podemos fazê-lo, imediatamente. Temos uma crise energética e uma crise climática urgentes. Deveríamos dedicar-nos durante toda uma geração a enfrentar esses problemas de um modo que nos permita reconstruir paulatinamente o nosso país. Do ponto de vista fiscal, o que há a fazer é inverter a carga tributária, que actualmente é sustentada pelos trabalhadores. Desde o começo da crise que eu venho defendendo uma isenção fiscal temporária dos salários, de modo a que todos tenham um aumento dos seus rendimentos líquidos e possam abater as suas hipotecas, o que seria uma coisa boa. Também há que encorajar os ricos a reciclar o seu dinheiro, e por isso estou a favor de um imposto sobre os bens imóveis, um imposto que tradicionalmente tem beneficiado enormemente as nossas maiores universidades e organizações filantrópicas sem fins lucrativos. Essa é uma diferença entre nós e a Europa.
Bem, creio que isso responde às minhas perguntas.
Mas eu ainda tenho mais uma resposta! Desde 1970, com que frequência o governo deixou de incorrer em défice? Em seis curtos períodos, todos seguidos de recessão. Porquê? Porque o governo necessita do défice; é a única maneira de injectar recursos financeiros na economia. Se não se incorre em défice, o que se faz é esvaziar os bolsos do sector privado. No mês passado, estive num congresso em Cambridge em que o director executivo do FMI disse ser contrário aos défices e partidário do aperto fiscal: mas ambas são a mesma coisa! O défice público significa mais dinheiro nos bolsos privados.
A forma como agora se sugere o corte de gastos sem retrair a actividade económica é completamente falaciosa. Agora mesmo isso é desolador na Europa. Exige-se dos gregos que cortem 10% do gasto em poucos anos. E supõe-se que isso não vai afectar o PIB. Evidentemente que o fará! De tal maneira que não disporão de receitas fiscais necessárias para financiar sequer o nível mais baixo de gasto. Ontem obrigou-se a Espanha a fazer o mesmo. A zona euro está um despenhadeiro.
Por outro lado, olhe para o Japão. O país teve défices enormes ininterruptos desde o crash de 1988. Qual foi a taxa de juros da dívida pública japonesa desde então? Zero! Não tiveram o menor problema em financiar-se. O melhor activo que se pode possuir no Japão é o dinheiro à vista, porque o nível dos preços cai. Dá um rendimento de 4%. A ideia de que as dificuldades de financiamento se originam nos défices é um argumento sustentado numa metáfora muito potente, mas não nos factos, não na teoria e não na experiência quotidiana.
James K. Galbraith é professor de economia na Lyndon B. Johnson School of Public Affairs, da Universidade do Texas, em Austin.
Tradução Katarina Peixoto para a Carta Maior. Adaptado para Portugal por Luis Leiria
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