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O pepino ditador
No quintal das traseiras, havia um pouco de tudo: couves, alfaces, cenouras, nabos, feijões, tomates e outros legumes, incluindo uma batateira que ali nascera por engano. Mas o mais bizarro dos habitantes da horta era um pepineiro muito especial.
Enraizado debaixo de uma laranjeira, foi esticando a haste em direcção a um exuberante e perfumado roseiral, ao lado da casa, onde se situava a torneira de rega e havia mais luz. E, exactamente nessa extremidade, ostentava o único pepino da sua criação. Com o tempo, o pepino foi engordando o corpo e a prosápia. Num ápice, tratou de dominar toda a horta, à custa das muitas artes e manhas que lhe surgiam não se sabe bem de onde. O seu principal argumento incluía um monumental paradoxo:
- Reparem bem: eu não sou um simples pepino. Reuno o melhor de dois mundos. Por via das raízes, ostento o delicado sabor das laranjas. E, por influência da vizinhança, exalo o perfume distinto das rosas. Se confiarem em mim, prometo que nada vos faltará e levarei a horta à prosperidade.
Os legumes deixaram-se levar, talvez por apatia, talvez porque não tivessem meios de desmentir a falácia. Mas, quando o dono da casa, ocupado com outros afazeres, descurou os cuidados da horta, o pepino aninhou o corpo rechonchudo na vala de rega e usurpou as poucas gotas que pingavam da torneira.
Aos restantes, ordenou:
- Todos devem fazer sacrifícios. Se necessário, adubai a terra que vos deu vida, com os vossos corpos moribundos. O futuro da horta está em causa, bla-bla, bla-bla, bla-bla…
A coisa piorou com o tempo. Os legumes mirravam de sede e o descontentamento levou alguns à revolta:
- Um pepino que sabe a laranjas e cheira a rosas? Balelas! O tipo é mas é um ‘ganda’ mentiroso. Ele quer é usurpar os nossos direitos - dizia um. Acicatada, toda a horta protestava:
- Deixa vir a água até nós. Não podemos aguentar mais sacrifícios as couves, as alfaces, as cenouras, os nabos, os feijões, os tomates e outros legumes, incluindo a batateira que ali nascera por engano, gritavam em coro:
- Mentiroso, mentiroso. Mentiroso.
Mas o pepino, colocado em posição estratégica, não abria mão dos seus privilégios. Ora, como não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe, um dia, o dono da casa foi ao quintal, de sachola em punho. Entre outras coisas, tinha na intenção apanhar umas folhas de couve para fazer uma sopa. Mas deu-se conta que estava tudo a morrer de sede. No caminho, topou com o pepino, verde e viçoso, e levou-o. Depois, abriu a torneira e dessedentou a horta. Com o produto da colheita, fez uma portentosa salada. Que se saiba, não sabia a laranjas, nem cheirava a rosas. Mas soube-lhe muito bem. Do pepino mentiroso, sobraram apenas as cascas, que os coelhos roeram com grande satisfação.
Alma Perdida
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