A Ciber-guerra da Wikileaks
A ciberguerra começou. Não uma ciberguerra entre Estados como se esperava, mas sim entre Estados e a sociedade civil internauta. Nunca mais os governos poderão ter a certeza de manter os seus cidadãos na ignorância das suas manobras. Por Manuel Castells
A diferença é que os meios de comunicação estão inseridos num contexto empresarial e político susceptível a pressões quando as informações são comprometedoras. Daí que a discussão académica sobre se a comunicação pela Internet é um meio de comunicação, tem consequências práticas. Se o é (algo estabelecido na investigação) está protegida pelo princípio constitucional da liberdade de expressão, e os meios e os jornalistas deveriam defender o Wikileaks porque um dia pode tocar-lhes a eles. E ninguém questiona a autenticidadade dos documentos filtrados. De facto, jornais mundiais importantes estão a publicar e comentar esses documentos para regozijo e educação dos cidadãos que recebem um curso acelerado sobre as misérias da política nos corredores do poder (pois, por que é que Zapatero está tão preocupado?).
O problema, diz-se, é a revelação de comunicações secretas que poderiam dificultas as relações entres Estados (aquilo sobre o perigo para as vidas humanas é uma patranha). Na realidade, deveria medir-se esse risco em relação à ocultação da verdade sobre as guerras aos cidadãos que as pagam e sofrem. Em qualquer caso, ninguém duvida de que se essas informações chegaram aos meios de comunicação, estes também as quiseram publicar (outras coisa é poder). Mais, uma vez difundidas na rede, estão publicadas. O que põe em causa é a o controlo dos governos directa ou indirectamente. Uma questão tão fundamental, que motivou uma reacção sem precedentes nos EUA, com apelos ao assassinato de Assange por líderes republicanos e até colunistas do Washington Post, e um alarme mundial generalizado desde Chávez até Berlusconi, com a honrosa excepção de Lula e a reacção significativa de Putin.
A esta cruzada para matar o mensageiro uniu-se a justiça sueca num história rocambolesca na qual o pseudo feminismo se aliou à repressão geopolítica. Acontece que as relações suecas de Julian Assange (alguém investiga a sua ligação aos serviços secretos?) denunciaram-nos porque em pleno acto (consentido) o preservativo rompeu-se, ela disse que não queria continuar e Assange não pode ou não quis interromper o coito e isto, segundo a lei sueca, poderia ser violação. O que não impediu que a violada organizasse, no dia seguinte, uma festa de despedida para Assange. Perante tamanho acto de terrorismo sexual, a Interpol emitiu o mandato de detenção europeu com o máximo nível de alerta, desmentindo que fosse por pressão dos EUA. E quando Assange se entregou em Londres, o juiz não aceitou o pagamento de fiança, talvez para enviá-lo para os EUA via Suécia.
Com o mensageiro sob rédeas, há que ir pela mensagem. Aqui começam as pressões que motivam a PayPal, a Visa, a Mastercard e o banco suíço do Wikileaks a fechar o cerco, que eliminam o domínio virtual e que a Amazon retire o servidor (o que não a impede de vender o conjunto completo dos documentos por 7 dólares). A contra ofensiva internauta não se fez esperar. Os ataques de serviços secretos contra ao site do Wikileaks fracassaram porque os servidores espelho proliferaram, ou seja, cópias imediatas dos sites existentes mas com outra direcção. Por esta altura, existem mais de mil em funcionamento (se quiser ver a lista, pesquise no Google 'wikileaks.mirror'). Em represália à tentativa de silenciar o Wikileaks, Anonymous, uma conhecida rede hacker, coordenou os ataques contra as empresas e instituições que o fizeram. Milhares de anónimos juntaram-se à festa utilizando o Facebook e o Twitter, ainda que com crescentes restrições. Os amigos do Wikileaks no Facebook ultrapassaram o milhão e aumentam em uma pessoa por segundo. O Wikileaks distribuiu a 100 mil usuários um documento encriptado com segredos falsamente mais perigosos para os poderosos cuja chave se difundiria se a perseguição se intensificar.
A segurança dos Estados não está em jogo (nada do que foi revelado coloca um perigo à paz mundial nem era ignorado nos círculos do poder). O que se debate é o direito de o cidadão saber o que fazem e pensam os seus governantes. E a liberdade de informação nas novas condições da era da Internet. Como dizia Hillary Clinton na sua declaração em Janeiro de 2010: “A Internet é a infra-estrutura icónica da nossa era... Como ocorria nas ditaduras do passado, existem governos que apontam contra os que pensam de forma independente utilizando estes instrumentos”. Esta mesma reflexão aplica-se agora?
O tema chave está em que os governos podem espiar, legal ou ilegalmente, os seus cidadãos. Mas estes não têm direitos à informação sobre quem actua em seu nome, exceptuando a versão mais censurada que os governos constroem. Neste grande debate, as empresas da Internet auto proclamadas plataformas de livre comunicação e os médios tradicionais tão ciosos da sua própria liberdade, vão contradizer-se. A ciberguerra começou. Não uma ciberguerra entre Estados como se esperava, mas sim entre Estados e a sociedade civil internauta. Nunca mais os governos poderão ter a certeza de manter os seus cidadãos na ignorância das suas manobras. Embora hajam pessoas dispostas a fazer leaks numa Internet povoada de wikis, surgirão novas gerações de wikileaks.
Publicado originalmente no La Vanguardia
Tradução de Sofia Gomes para o Esquerda.net
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