A CRISE DO SUBPRIME
RECESSÃO OU NÃO RECESSÃO, EIS A QUESTÃO PARA 2008
1929
Uma das consequências do crash das bolsas de 1929, foi a invenção de mecanismos no mercado financeiro para impedir novas crises financeiras de passarem para a economia real, através do controlo da queda dos activos. "As ferramentas que os banqueiros centrais têm hoje estão ajustadas ao combate de ondas - e não tsunamis - criadas pelos velhinhos bancos que recebiam depósitos e concediam crédito. Não têm instrumentos nem parecem saber muito bem como se batalha contra ondas criadas por crédito que gerou ainda mais crédito e mais crédito, através de titularizações e outros produtos que fizeram da intermediação bancária uma ciência oculta", escreveu Helena Garrido numa crónica sobre a crise no Jornal de Negócios. Quase 80 anos depois, em relação à segurança dos mercados e aos supostos reguladores, estamos essencialmente no mesmo sítio.
O paralelo com a crise que começou a Grande Depressão não pára aqui: uma economia baseada na especulação.
Uma diferença é apontada por Helena Garrido: "O banqueiro inventou há séculos o crédito a partir do depósito e revolucionou o universo da moeda. O engenheiro financeiro inventou crédito a partir de crédito, a partir de crédito, a partir de crédito... durante as últimas décadas do século XX". Além disso, a crise de 1929 não se desenrolou num mundo em que a globalização pode ser o rastilho para uma crise global. Esta crise teve origem nos Estados Unidos, numa parte do mercado imobiliário.
"Percebermos os mecanismos que dão origem a esta crise e os mecanismos da sua difusão por toda a economia global é tentarmos perceber a configuração do actual processo de globalização neoliberal", considera João Rodrigues, investigador no ISCTE. "Esta não é a primeira crise. O processo de globalização neoliberal desde os anos 80 é marcado por sucessivos episódios de instabilidade financeira, que ocorrem um pouco por toda a economia global, nomeadamente nas periferias. Esta crise surge e atinge hoje o centro nevrálgico da economia global, a economia norte-americana. Um dos factores de incerteza deriva de uma das características do processo de globalização neoliberal: apesar de tudo, os EUA têm sido capazes de ir gerindo os sucessivos episódios de instabilidade financeira. A intervenção maciça da Reserva Federal(banco central americano), seguida também pela intervenção do Banco Central Europeu, revelam que um dos elementos centrais do modelo neoliberal de globalização tem sido a capacidade dos governos e das políticas económicas de irem gerindo nos países centrais as consequências da crise, fazendo com que ela se repercuta sobre outros países ou sobre os sectores sociais mais frágeis e mais vulneráveis". Porém, quando o principal mercado financeiro entra em crise por causa das famílias mais pobres não conseguirem pagar o crédito sobre as suas casas, as consequências são inevitáveis.
Quando a bolha do crédito de alto risco (subprime) explodiu nos EUA, em Agosto de 2006, foi o "crédito a partir de crédito a partir de crédito" no mercado hipotecário que se estilhaçou. O endividamento era um negócio fabuloso, com os empréstimos a serem assegurados por segundas hipotecas em nome de pessoas que mal tinham como pagar os juros que subiam sobre os créditos imobiliários. Todo esse dinheiro era depois negociado em títulos de crédito... até alguém não poder pagar, e toda a pirâmide do mercado imobiliário norte-americano ruir. Os títulos associados a "estes maus créditos imobiliários foram comprados um pouco por todo o mundo (...). Não se sabe bem por onde estão repartidos os riscos. E todos os dias, há bancos que acabam por apresentar nas suas contas dizendo sim, comprei, e aí está o que perdi", explicava sexta-feira o director geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss Kahn.
As cabeças que já rolaram
O ano de 2008 começou com mini (ou não tão mini) crashes nas bolsas dos EUA e da Europa. Tal como em 1929, os efeitos prolongam-se e muito dinheiro, simplesmente, desapareceu e ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos anos.
Segundo o professor de Economia Aplicada Juan Torrez López, "os bancos (e em geral os grandes possuidores de recursos financeiros) converteram-se no eixo em torno do qual gira a vida económica. Vêm obtendo lucros enormes e realizam investimentos gigantescos, alimentando a concentração bancária e empresarial e a especulação financeira. Directa ou indirectamente (graças ao seu financiamento) são os verdadeiros protagonistas das bolhas especulativas imobiliárias dos últimos anos, das aquisições especulativas de empresas e do vaivém das bolsas. Mas agora, a questão põe-se em saber se, depois de terem colocado as suas reservas em tantos investimentos especulativos, estarão em condições de suportar uma crise de liquidez financeira, uma drástica diminuição da capacidade de endividamento das famílias e das empresas, com falta de pagamentos mais ou menos generalizados, ou uma explosão da bolha imobiliária que reduza o valor contável dos seus activos. Isto é, se dispõem de recursos financeiros suficientes para fazer frente aos pedidos efectivos ou para proporcionar os recursos financeiros que a vida económica requer". Resta saber se os bancos têm capacidade para devolver o dinheiro que supostamente guardam, mas a questão de se suportam a crise de maneira calma já está respondida. As demissões sucederam-se nos últimos meses de 2007 e em 2008.
A 11 de Janeiro, o co-presidente do Barclays Capital, Grant Kvalheim, demitiu-se, deixando Jerry del Missier como único presidente, dois meses depois de a casa de investimento ter anunciado que iria amortizar activos relacionados com o "subprime" no valor de 1,76 mil milhões de euros. Também na banca americana, James Cayne, CEO da Bear Stearns (quinto maior banco de investimentos dos Estados Unidos) abandonou funções. O Canadian Imperial Bank of Commerce, cujos títulos foram os que tiveram pior desempenho no grupo da banca em 2007, demitiu o seu banqueiro de topo e o responsável pelo departamento de risco, depois de anunciar a amortização de activos no valor de três mil milhões de dólares.
O CEO do Citigroup, Charles O. Prince, demitiu-se a 4 de Novembro, quando a casa de investimento admitiu que teria de amortizar activos entre oito e 11 mil milhões de dólares. O CEO da Merril Lynch, Stan O'Neal, deixou o cargo a 30 de Outubro, depois de uma amortização de activos no valor de 8,4 mil milhões de dólares. Os números dois da Morgan Stanley e da Bear Stearns também foram afastados. O banco norte-americano Merrill Lynch poderá ter que amortizar mais activos no valor de 15 mil milhões de dólares relacionados com perdas verificadas no mercado hipotecário de alto risco nos Estados Unidos, quase o dobro relativamente à sua estimativa original, noticiou o 'New York Times' a 11 de Janeiro. Em Portugal, desde o início de 2008, desapareceram cerca de nove mil milhões de euros - o valor que chegou a perder o PSI-20 desde esta altura.
As injecções dos bancos centrais
Em 2001, quando rebentou a bolha especulativa das "dotcom", a Reserva Federal norte-americana (Fed) baixou as taxas de juro. Uma crise acabou assim, mas a baixa das taxas de juro permitiu uma explosão do mercado imobiliário, o que levou à formação de uma nova bolha especulativa e à possibilidade de uma nova crise. "Para manter a economia andando, a Reserva Federal foi forçada a baixar as taxas de juros a um nível sem precedentes e depois olhar para o outro lado quando a América se envolveu em empréstimos irresponsáveis. A economia estava sustentada em dinheiro emprestado e tempo emprestado.", explica Joseph Stiglitz.
No final de 2007, no espaço de nove dias, a Fed reduziu os juros de 4,25% para 3%, o maior corte nos 20 anos de história em que o banco central utiliza as Fed Funds para conduzir a política monetária. Para impedir a recessão americana, Jeffrey Lacker, presidente da Fed admitiu, em Fevereiro, que "podem ser necessárias" mais descidas nas taxas de juro. O Banco Central Europeu (BCE) não está convencido da gravidade da situação, face ao enfraquecimento do crescimento do sector da indústria na Europa e das quedas nas bolsas, portanto mantém a taxa de juro nos 4% desde Junho passado, contra as expectativas de bancos e economistas. Mas a aparência de calma não impediu os bancos centrais de começar a intervir massivamente desde Agosto injectando milhões de euros em liquidez, nem de anunciar a sua primeira intervenção coordenada de grande amplitude desde o 11 de Setembro de 2001. O Banco Central Europeu (BCE) decidiu continuar a injectar liquidez no sistema financeiro em Fevereiro, refinanciando os empréstimos a prazo alargado que tinha feito em Novembro e Dezembro, na sequência dos problemas do crédito hipotecário de alto risco. As duas operações de refinanciamento de prazo alargado suplementares que foram colocadas em 23 de Novembro e 12 de Dezembro valem 60 mil milhões de euros, cada uma. O BCE, a Reserva Federal norte-americana, o Banco de Inglaterra e o Banco do Canadá foram alguns dos bancos que se juntaram para injectar dinheiro no sistema financeiro e fazer face às dificuldades de empréstimos entre instituições.
Em Davos, os bancos centrais levaram um puxão de orelhas de banqueiros e economistas. "Houve quem aplaudisse a Fed, mas considerasse que o corte nas taxas terá chegado tarde demais, como Nouriel Roubini, da Universidade de Nova Iorque, houve quem, pelo contrário, acusasse a Reserva Federal de ter sucumbido ao pânico dos mercados e enveredado por uma política de crédito (mais) barato que esteve precisamente por trás da crise no 'subprime', como sublinhou o director para a Ásia da Morgan Stanley, Stephen Roach; e houve ainda quem (na verdade, uma expressiva maioria) concluísse que os bancos centrais perderam o poder de antecipar e influenciar os mercados, e a economia de forma mais geral", lia-se no Jornal de Negócios no final de Janeiro. "Para Stiglitz a actual crise e a forte instabilidade que se tem vivido nos mercados são as "consequências previsíveis de uma má administração" dos bancos centrais. Snow foi a principal voz dissonante no debate, defendendo o "papel importante" desempenhado pelos bancos centrais nos últimos 20 anos, e a decisão "forte e vigorosa" da Reserva. Federal."
Do marcado financeiro para a economia real (1929 de novo?)
Apesar de todos os esforços, e de forma marcada no sector financeiro, muitas pessoas perderam os seus empregos nos EUA. O mesmo está a acontecer na Europa e em Portugal, mesmo que apresente uma das maiores taxas de desemprego da EU-27. Com a subida do preço do petróleo e a queda do dólar a acompanhar as perdas dos mercados financeiros, já poucos duvidam que a crise está aí. A única pergunta é se a recessão nos EUA será como a grande crise de 1929 ou apenas uma mais suave, de cinco ou seis anos.
Helena Garrido aposta na porta número um: "receio que esteja em andamento uma crise económica de proporções relativamente graves, com semelhanças à de 1929. A crise que vai impor novas regras de funcionamento no sector financeiro. Tal como a crise de 1929."
Receios que aumentaram em muitos economistas perante o fantasma da recessão americana, a par com a desvalorização do dólar, e que explodiram na "segunda-feira negra" das bolsas europeias e asiáticas (21 de Janeiro).
Tiago Caiado Guerreiro, advogado fiscalista considera que "a crise do 'subprime' nos EUA, bem como o fim da euforia imobiliária mundial que se viveu durante os últimos 7 a 8 anos, está lenta mas inexoravelmente a conduzir a maior parte das economias não emergentes à recessão ou a desacelerações abruptas no crescimento económico. A subida das taxas de juro, agravadas por um aumento do prémio resultante de uma maior percepção do risco, tem efeitos dramáticos numa economia em que as empresas e as famílias estão profundamente endividadas (130% do PIB)". Seria possível, nestas condições, evitar uma crise do mercado capitalista, que se espalhasse aos mercados internacionais? Francisco Louçã afirma que não: "a titularização das dívidas aos bancos, nomeadamente pelos empréstimos hipotecários, foi estimulada pelo boom do imobiliário mas criou agora este monstro de especulação: a falência de um fundo arrasta os outros, a dispersão do risco cria agora uma espiral recessiva que espalha o risco e a crise por toda a economia. Ora, os bancos centrais nunca financiaram, e é duvidoso que se atrevam a fazê-lo pela primeira vez, as instituições financeiras que não são bancos comerciais. Mas são elas que dirigem os mercados financeiros. A crise de 2008 será a primeira grande crise financeira da desregulação ou da financiarização desregulada dos mercados mundiais". As consequências da desregulação já se fazem notar.
Mesmo que não haja uma corrida aos bancos (o que é possível, mas altamente improvável) nem corretores da bolsa a atirarem-se dos arranha-céus de Nova Iorque, a OIT estima que cinco milhões de pessoas podem ficar desempregadas em 2008, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, devido aos efeitos combinados da crise financeira e do aumento dos preços do petróleo. Em 2007, a OIT registou mais 600 mil desempregados na Europa e nas economias desenvolvidas. Desemprego que é acompanhado pela perda das famílias endividadas pelos contratos enganadores de subprime: "só na cidade de Los Angeles, em cada hora que passa mais uma família fica sem casa". A crise provocada pela exploração capitalista destas pessoas afectaas em primeiro lugar.
Fontes:
Dez ideias para entender a crise financeira Juan Torrez López, portal Esquerda.net
Nem o Pai Natal salva os mercados financeiros Francisco Louça, Esquerda.net
Avariou a nova máquina de fazer dinheiro Helena Garrido, opinião no Jornal de Negócios
Mais cinco milhões de desempregados Raquel Martins, Jornal de Negócios
Trichet apoiado pela Alemanha Eva Gaspar, Jornal de Negócios
Trichet deverá resistir às pressões para baixar juros Ana Filipa Rego
Entrevista a João Rodrigues e Nuno Teles, investigadores do ISCTE, por Carlos Cerqueira e Carlos Santos em Esquerda.net
'Subprime' - crise ou oportunidade? Tiago Caiado Guerreiro, Jornal de Negócios
Recesión en los Estados Unidos 'Su crisis y algo más' Nelson Soza Montiel, ARGENPRESS.info
Como impedir o declínio Joseph E. Stiglitz, Esquerda.net
Para mais sobre este assunto, consultar o dossier Crise Financeira Mundial, Esquerda.net.
Texto de Simone Matos
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