A 'ditamole'
Manteve as liberdades mas destruiu as possibilidades de serem efectivamente exercidas e instaurou um regime de democracia política combinado com fascismo social. Por isso pode ser designada como “ditamole”.
Fila oara o centro de emprego do Areeiro, Lisboa. Foto de Paulete Matos
Se nada fizermos para corrigir o curso das coisas, dentro de alguns anos se dirá que a sociedade portuguesa viveu, entre o final do século XX e começo do século XXI, um luminoso mas breve interregno democrático. Durou menos de quarenta anos, entre 1974 e 2010. Nos quarenta e oito anos que precederam a revolução de 25 de Abril de 1974, viveu sob uma ditadura civil nacionalista, personalizada na figura de Oliveira Salazar. A partir de 2010, entrou num outro período de ditadura civil, desta vez internacionalista e despersonalizada, conduzida por uma entidade abstracta chamada “mercados”.
As duas ditaduras começaram por razões financeiras e depois criaram as suas próprias razões para se manterem. Ambas conduziram ao empobrecimento do povo português, que deixaram na cauda dos povos europeus. Mas enquanto a primeira eliminou o jogo democrático, destruiu as liberdades e instaurou um regime de fascismo político, a segunda manteve o jogo democrático mas reduziu ao mínimo as opções ideológicas, manteve as liberdades mas destruiu as possibilidades de serem efectivamente exercidas e instaurou um regime de democracia política combinado com fascismo social. Por esta razão, a segunda ditadura pode ser designada como “ditamole”.
Os sinais mais preocupantes da actual conjuntura são os seguintes. Primeiro, está a aumentar a desigualdade social numa sociedade que é já a mais desigual da Europa. Entre 2006 e 2009 aumentou em 38,5% o número de trabalhadores por conta de outrem abrangidos pelo salário mínimo (450 euros): são agora 804.000, isto é, cerca de 15% da população activa; em 2008, um pequeno grupo de cidadãos ricos (4.051 agregados fiscais) tinham um rendimento semelhante ao de um vastíssimo número de cidadãos pobres (634.836 agregados fiscais). Se é verdade que as democracias europeias valem o que valem as suas classes médias, a democracia portuguesa pode estar a cometer o suicídio.
Segundo, o Estado social, que permite corrigir em parte os efeitos sociais da desigualdade, é em Portugal muito débil e mesmo assim está sob ataque cerrado. A opinião pública portuguesa está a ser intoxicada por comentaristas políticos e económicos conservadores – dominam os meios de comunicação como em nenhum outro país europeu – para quem o Estado social se reduz a impostos: os seus filhos são educados em colégios privados, têm bons seguros de saúde, sentir-se-iam em perigo de vida se tivessem que recorrer “à choldra dos hospitais públicos”, não usam transportes públicos, auferem chorudos salários ou acumulam chorudas pensões. O Estado social deve ser abatido. Com um sadismo revoltante e um monolitismo ensurdecedor, vão insultando os portugueses empobrecidos com as ladainhas liberais de que vivem acima das suas posses e que a festa acabou. Como se aspirar a uma vida digna e decente e comer três refeições mediterrânicas por dia fosse um luxo repreensível.
Terceiro, Portugal transformou-se numa pequena ilha de luxo para especuladores internacionais. Fazem outro sentido os actuais juros da dívida soberana num país do euro e membro da UE? Onde está o princípio da coesão do projecto europeu? Para gáudio dos trauliteiros da desgraça nacional, o FMI já está cá dentro e em breve, quando do PEC 4 ou 5, anunciará o que os governantes não querem anunciar: que este projecto europeu acabou.
Inverter este curso é difícil mas possível. Muito terá de ser feito a nível europeu e a médio prazo. A curto prazo, os cidadãos terão de dizer basta! Ao fascismo difuso instalado nas suas vidas, reaprendendo a defender a democracia e a solidariedade tanto nas ruas como nos parlamentos.
A greve geral será tanto mais eficaz quanto mais gente vier para a rua manifestar o seu protesto. O crescimento ambientalmente sustentável, a promoção do emprego, o investimento público, a justiça fiscal, a defesa do Estado social terão de voltar ao vocabulário político através de entendimentos eficazes entre o Bloco de Esquerda, o PCP e os socialistas que apoiam convictamente o projecto alternativo de Manuel Alegre.
Artigo publicado na revista Visão de 21 de Outubro de 2010
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