domingo, outubro 31, 2010

A lista dos culpados

Diversos comentadores – quase todos situados à direita – andam a regozijar-se pelo facto de Sócrates estar em vias de ser afastado da governação do país.
E vêem nisso um sinal altamente positivo, na medida em que tal significa, segundo eles, que o principal responsável pelo descalabro das contas públicas e pela situação de desastre económico-financeiro em que Portugal mergulhou vai ser removido do poder, abrindo-se um novo ciclo político com governantes preocupados em salvaguardar o interesse público – subentende-se: governantes do PSD, pois é esse o partido “naturalmente” apto para suceder ao PS.
Há mesmo quem pense que, com o PSD de Passos Coelho no poder, uma lufada de ar fresco soprará nas escolas e as piores e mais aberrantes “reformas” socratinas no ensino terão, finalmente, o merecido destino do «caixote de lixo da história».
Perante estas opiniões, cabe dizer duas ou três coisas.
Primeiro: não sendo nós suspeitos da menor simpatia por José Sócrates, e concordando que ele foi o pior primeiro-ministro num país em que esse cargo já foi ocupado por gente do nível de um Pinheiro de Azevedo, importa sublinhar que Sócrates não é o principal responsável pelo estado em que Portugal se encontra. Por grande que tenha sido o seu contributo para isso.
No momento actual, o pior que nos pode acontecer é deixarmos que a nossa inteligência seja capturada por análises simplistas, armadilhadas por antolhos ideológicos.
Se Portugal está como está, tal se deve a razões de ordem estrutural que transcendem, em muito, o período de governação de Sócrates. Vejamos as principais:
- o facto de a integração de Portugal na União Europeia ter sido feita de molde a confirmar e a assegurar as desvantagens da nossa posição assimétrica face aos países centrais;
- o facto de a primeira década de presença portuguesa na CEE (depois União Europeia) ter sido marcada pelo completo desperdício dos fundos estruturais que afluíram até nós, e por decisões de política económica que apenas acentuaram o carácter periférico e atrasado do nosso tecido produtivo, apostando-se no desmantelamento da agricultura e em sectores de mão de obra desqualificada e com baixos salários como factor competitivo – destinado, como hoje se vê, a ser rapidamente ultrapassado;
- o facto, decorrente do acima exposto, de que o fim do modelo das indústrias baseadas em trabalho intensivo e salários de miséria não possa ser acompanhado pela transição para um modelo assente na produção de bens transacionáveis de alto valor acrescentado (nada se fez para isso);
- o facto de a adesão à moeda única ter aprofundado ainda mais as dependências de Portugal em relação ao exterior, entregando o país à financeirização da economia, ao crescimento desproporcionado do sector bancário, empenhado em suscitar a procura interna e o consumo na base totalmente artificial do recurso ao crédito e ao endividamento (fenómeno que tanto afectou os particulares como as próprias empresas);
- e o facto, quase sempre negligenciado nos comentários políticos, de que a classe empresarial portuguesa se reduz, com raras e honrosas excepções, a duas categorias: o pato-bravo boçal e chico-esperto, que arruína as empresas, foge com o dinheiro e deixa atrás de si centenas ou milhares de trabalhadores no desemprego e com salários em atraso; e o grande chupador da teta do Estado, que vive em conluio com uma classe política corrompida até à medula, sempre à espreita das altas negociatas cozinhadas por baixo da mesa, das concessões atribuídas sem concurso público, das parcerias público-privadas que não cessam de cavar as finanças do Estado (e cuja origem, uma vez mais, é bem anterior à presença de Sócrates no Governo). 
Ora, cada um destes factos não remete directamente para a governação socratina, a qual, quando muito, se limitou a prolongar tendências que já vinham de trás.
Na verdade, os três primeiros factos responsáveis pelo buraco em que estamos metidos ocorreram e foram consolidados no período de governação deste senhor:
 E a explosão dos mercados financeiros em Portugal, consequência do acesso fácil ao crédito com taxas de juro reduzidas, aconteceu durante os governos deste cavalheiro:
Por isso, é de uma enorme miopia analítica querer empurrar a exclusiva responsabilidade para os braços do outro pseudo-engenheiro que nos saiu na rifa (por obra e graça do sufrágio universal…). De resto, os que hoje o criticam não deixaram, no passado, de aplaudir entusiasticamente as opções políticas que originaram os factos acima indicados, quando não participaram activamente na sua génese.
Todavia, também não é miopia menor esperar que este político emergente
consiga (ou sequer queira) redimir o país do desastre a que nos conduziram. O seu programa ideológico, cuja matriz neoliberal não faz questão de ocultar, significa apenas mais do mesmo. E o mesmo é a destruição vertiginosa dos direitos sociais dos trabalhadores, o seu empobrecimento como contrapartida de uma incessante redistribuição da riqueza nacional dos que pouco têm para os que muito acumulam.
Não perceber isto é não perceber nada. E não perceber nada implica, hoje em dia, ficar a esbracejar no pantanal. A menos que se tenha a conta bancária de um Belmiro de Azevedo ou a reforma choruda dos altos funcionários do Banco de Portugal (os mesmos que dizem que temos de nos conformar com um futuro de miséria envergonhada).
APEDE

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