França: o rastilho da revolta
Viriato Soromenho Marques alerta: a situação tem potencial para alastrar
LUSA
Esta sexta jornada nacional de protesto conseguiu quase igualar a mobilização recorde do passado dia 12 de Outubro: 1,2 milhões de pessoas, segundo a polícia, e 3,5 milhões, de acordo com os sindicatos. Entre os sectores mais afectados, destaque para o tráfego aéreo, que foi ontem fortemente perturbado por uma greve dos controladores aéreos. O braço de ferro entre os sindicatos e o Governo francês foi igualmente marcado pela falta de combustível em 2500 postos de abastecimento. O dia de protesto foi ainda marcado com confrontos entre as forças de segurança e estudantes, nos arredores da capital francesa. Algumas centenas de jovens e quase o mesmo número de polícias juntaram-se ontem em Nanterre, nos subúrbios de Paris, num liceu que estava fechado devido aos distúrbios ali registados na véspera. Os jovens começaram a atirar pedras a partir de uma ponte e a polícia respondeu com granadas de gás lacrimogéneo e isolou a área.
Todos estes fenómenos consubstanciam uma revolta popular não só contra as pensões de reforma, mas contra os privilégios dos políticos, contra a prevalência da economia e do capitalismo selvagem sobre as preocupações sociais com o bem-estar dos cidadãos... São expressões de descontentamento de uma classe média vergada pelo peso dos impostos e cada vez menos defendida, face à falência do Estado-previdência.
Há um livro do escritor português recentemente falecido, João Aguiar, que alertava para o facto de que a 'paz podre' que actualmente vivemos poderia desfazer-se facilmente e redundar em revoltas de rua, no rescaldo de um neo-liberalismo que se afirmava salvador mas que enferma de numerosos vícios: 'O Jardim das Delícias'. Nele, Aguiar admitia mesmo a possibilidade de a revolta latente em muitas pessoas se exprimir pela adesão a movimentos extremistas.
Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, filósofo político, concorda com esta visão. "Este tema não é de fácil leitura... A contestação tem vários actores sociais... Há uma sobreposição temática, um acumular de tensões latentes. Os estudantes não estão a protestar, provavelmente, por causa da idade de reforma... E parece haver uma desproporção entre o motivo invocado e a dimensão da situação", disse ao DIÁRIO. "Sarkozy está a subestimar o que está a acontecer", inclusive mostrando amadorismo face aos acontecimentos, afirmou.
Para este académico, a história mostra que os acontecimentos sociais em França têm uma tendência enorme para se repercutirem pelo resto da Europa. Em Portugal, de resto, e face ao Orçamento de Estado para 2011, também há motivos para insatisfação, mas "a sociedade francesa tem um grau de resiliência diferente da portuguesa ou da de outros países", onde têm sido tomadas também medidas muito severas face à crise, mas onde há uma certa correspondência entre a opinião dos governantes e a opinião popular.
"Em França, porém, estamos a assitir a uma situação de grande crispação entre a população activa e o governo. Com o que está a acontecer no resto da Europa, há um potencial de alastramento muito grande", alerta o nosso interlocutor, que acha que "isto não vai parar".
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